Nas obras de Francisco Vidal (n. 1978, Portugal), a palavra é gesto, a cor é brado e o desenho, urgência. A sua pintura – escrita em estado de combustão – abre-se como um palimpsesto vibrátil onde o graffiti, a banda desenhada, os padrões africanos, o cubismo e o hip-hop não são estilos nem citações, mas constelações que colapsam sobre si mesmas num presente fervilhante. Nascido em Portugal, filho de pais angolanos e cabo-verdianos, Francisco Vidal habita a encruzilhada.
No cruzamento entre territórios, Francisco Vidal ergue uma prática que pulsa entre Luanda e Lisboa, como quem traça mapas afetivos com pinceladas em alta voltagem. A sua pintura é matéria viva: entre linhas caligráficas que oscilam entre o grito e o murmúrio, compõe dispositivos de inscrição coletiva e resistência.
Painéis de cores vibrantes - inundados por vermelho e verde, amarelo e roxo, laranja e azul, com apontamentos de branco e incisões de um negro quase absoluto – tornam-se território onde a palavra se cruza com o desenho. A escrita revela-se como ferramenta de poder e emancipação, em que a palavra desenhada, outrora enclausurada, se converte em voz de resistência e luta. A sua pintura é provocadora e incisiva, no sentido em que não tranquiliza o olhar do espectador, mas ativa-o e interroga. Evocando a estética da banda desenhada, dos desenhos a preto e branco, dos múltiplos planos de ação e composição e, simultaneamente, do cartaz publicitário, o artista angolano usa a pintura como meio crítico para a reflexão sobre a descolonização e, mais do que isso, sobre a real identidade de um povo e cultura, anteriores a qualquer posse ocidental.
Letras desenhadas em gestos brutos e precisos, palavras riscadas e apagadas com sobreposições de tinta, texto que ocupa espaço e se confunde com o fundo berrante e saturado. O artista transporta a língua portuguesa, muitas vezes manipulada visual e semanticamente – fragmentada, sobreposta, distorcida – para o meio pictórico, cruzando-a com o crioulo cabo-verdiano e ainda palavras reinventadas. Como se a escrita fosse sonoridade antes de ser significado, ruído antes de ser ordem. Mais do que uma língua fixa, o que vemos nas suas telas é uma língua em estado de combustão – uma língua de fronteira – concedendo-lhe lugar de fala, de projeção, palco para a sua existência.
A caligrafia pictórica, por vezes ilegível, é escrita de rua, código de pertença, um murmúrio que se ergue em mural. A prática de Francisco Vidal, onde se cruza desenho, pintura, escultura e instalação, não procura pacificar sentidos, mas agitá-los. A sua obra é um território descontínuo e fértil, onde a memória da diáspora africana, a crítica à colonialidade e o reconhecimento da herança transcultural se entrelaçam em imagens que celebram, denunciam e constroem um outro modo de estar no mundo.
Investigação e criação de textos de apoio à curadoria: Leonor Guerreiro Queiroz