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Malangatana Ngwenya

Malangatana Ngwenya (n. 1936, Moçambique), figura central da arte moderna africana, cresce entre os rituais da tradição e os contornos da ocupação colonial. O seu percurso artístico nasce de uma urgência vital: transformar em imagem os sonhos, os medos e as violências do seu tempo.

A sua obra, profundamente marcada pelos traumas da colonização e da guerra de libertação, articula-se numa linguagem visual própria, onde o grotesco e o simbólico se entrelaçam. Figuras humanas e animais fundem-se, os corpos multiplicam-se e dissolvem-se em composições densas, caóticas, por vezes sufocantes. Trata-se de uma pintura onde o sonho e o delírio não funcionam como evasão, mas como formas de confronto com o real.

Em largos planos de cor, as pinturas são dominadas por vermelhos terrosos e azuis vibrantes, onde corpos humanos se (con)fundem com animais, originando criaturas mágicas, vindas de um outro mundo. A tensão é palpável nas composições de Malangatana: multidões comprimidas, por vezes sem espaço para deambular pela tela, rostos alertas ou aterrados, corpos nus envoltos por aves, olhos, máscaras e símbolos de um universo ritual – quase uma alusão ao Inferno e ao seu calor tórrido. Noutras obras, as figuras surgem encaixadas numa espécie de “roda-viva” – como um cardume arrastado pela corrente –, imersas num vórtice de formas aquáticas, dentes e peixes: tudo se dissolve numa espiral de presságio. A água é, simultaneamente, vida e ameaça, memória e esquecimento.

As composições verticais sugerem um movimento ascendente, como se aquelas figuras procurassem um escape ou uma via de transcendência. A partir de um cromatismo intenso, vislumbramos quase uma cena de possessão coletiva: corpos longilíneos e contorcidos, rostos gritantes, presos numa floresta de espíritos e espectros.

A pintura de Malangatana é indissociável da sua biografia: da prisão política nos anos 60, da sua militância cultural, do conhecimento profundo dos mitos e dos rituais do sul de Moçambique. Mas o que torna a sua obra singular é a capacidade de fundir tudo isso numa gramática visual única, que não pertence a um só lugar – nem ao Ocidente, nem à África colonial, nem sequer a uma escola de pintura – mas a um espaço mestiço da visão. Como afirmou o arquiteto Pancho Guedes, a sua obra tem “um surrealismo involuntário, direto e mágico”. E é precisamente isso que as suas pinturas nos oferecem: uma viagem através do invisível, onde a arte se torna corpo coletivo, grito silencioso e memória viva.

Investigação e criação de textos de apoio à curadoria: Leonor Guerreiro Queiroz

Cortesia: João de Almeida