Na obra de Nuno Félix da Costa (n. 1950, Portugal), a imagem emerge como uma epifania carnal – onde o grotesco se aninha no quotidiano e o sonho cede lugar ao delírio. Tal como os seus versos, as figuras visuais oscilam entre a abjeção e a ternura, o absurdo e o trágico. Ambas as linguagens – pintura e poesia – desconstroem o corpo e o seu habitat, exploram a falência da mente enquanto espaço racional e evocam uma nova mitologia feita de vício, disfunção e espera. A pulsão do sono, da morte, ou da suspensão, percorre tanto a palavra como o traço: o “animal que comeu o interior do crânio” é também este ser de três cabeças, exaurido, enleado em si, incapaz de morrer ou viver plenamente.
Os seus quadros, de pequenas dimensões, frequentemente pintados sobre fotografia, confrontam o espectador com personagens estranhas, em cenários oníricos, que oscilam entre o belo e o grotesco, o fascinante e o horrífico. Fazendo alusão às gravuras de Francisco de Goya, Nuno Félix da Costa constrói figuras animalescas, de rostos distorcidos e em decomposição, bem como personagens mitológicas ou com ressonâncias cristãs, oriundas de um outro mundo. Estes corpos e ambientes instauram uma atmosfera de inquietação e surpresa, onde o susto e o riso se equilibram como forças opostas, transformando cada composição numa espécie de filme de terror íntimo.
A conjugação da tinta acrílica com o carvão acrescenta grão superfície da pintura, conferindo-lhe uma textura muito peculiar, quase como um baixo-relevo, onde a pintura ganha dimensão e ultrapassa a bidimensionalidade da tela. Apontamentos de vermelho, manchas sangrentas, surgem como os únicos focos de cor na composição, levando-nos a debruçar sobre esses “desastres da guerra”.
A obra de Nuno Félix da Costa instala-se nesse ponto suspenso entre o que se vê e o que já não pode ser nomeado – uma zona de transição onde os corpos se tornam enigma, a noite adquire textura, e o dia se levanta, não com esperança, mas com indulgência. Tal como na sua poesia, as imagens recusam a explicação e preferem o balbucio da experiência sensível. E é precisamente nesse território liminar onde o grotesco encontra o lírico, que a sua pintura adquire a sua mais radical beleza. Torna-se aqui linguagem de assombro, num território que a razão não reconhece, mas que a poesia visita – como se cada figura, cada sombra e cada mancha, fossem um verso sobrevivente do inconsciente.
Investigação e criação de textos de apoio à curadoria: Leonor Guerreiro Queiroz