Há, nas obras de Renato Ferrão (n. 1975, Portugal), uma espécie de suspensão do visível. Como se a imagem, para se dar, precisasse primeiro atravessar um véu, ou vários. Aquilo que vemos não é cena, é clima. E no centro, sempre, o gato: esse ralo ambivalente, imanente à luz e ao vazio. Na vibração do espaço, são erguidas obras na delicadeza do desequilíbrio, revelando-se como mapas do corpo e da memória. Um corpo que não se mostra inteiro, mas fragmentado – ora metáfora, ora matéria –, onde o gesto do artista se entrelaça com a arquitetura da ausência.
A mesa, lugar de trabalho, de arquivo e de contenção, deixa de ser móvel estático para se tornar uma estrutura em movimento. As gavetas, arrancadas do seu leito habitual, flutuam suspensas por fios que sugerem tensão, redes invisíveis e relações de força. São membros distendidos, corpos ausentes que se projetam no espaço como extensões de um pensamento que não se quer contido. Há um vazio em cada caixa aberta, e desse vazio surge uma pergunta: o que é que retiramos quando abrimos uma gaveta da memória?
A estrutura metálica acolhe um universo de mecanismos, roldanas e fios vermelhos, como se estivéssemos dentro de uma máquina que respira com o corpo humano. Aqui, a organização do caos faz-se por tensões, por circuitos que não se fecham, por um ritmo que não se ouve, mas que se sente. Os fios verticais, quase capilares, convocam a ideia de condução e passagem. Não se trata apenas de matéria, mas de energia, de pensamento e de afeto. Um corpo técnico e poético que desafia a lógica da função e da produtividade.
O mundo de Ferrão transparece uma “fúria de viver”, edificado sob motores desafinados, engrenagens que respiram como máquinas de luto. Tudo é aparência e desejo. As suas imagens, nunca estáticas e sempre assombradas, falam de pequenas violências, da dor sem espetáculo, da memória que treme no corpo das coisas. O movimento é o que resta quando a razão se retira, e nele se inscreve uma melancolia persistente, quase barroca. Como Gilles Deleuze a sussurrar que há gestos mais cruéis que a morte, ou Walter Benjamin a compreender, na máscara do mundo, um vazio que cintila. Renato Ferrão escava esse vazio sem tentar preenchê-lo. As suas peças são lugares onde o olhar se perde para se reencontrar — um pouco mais estrangeiro, um pouco mais próximo do abismo e também, por isso, da ternura.
Investigação e criação de textos de apoio à curadoria: Leonor Guerreiro Queiroz
Cortesia: Renato Ferrão e Galeria Quadrado Azul