Na obra de Rúben Fernandes (n. 1995, Portugal), o gesto precede o pensamento e a pintura emerge como território de experimentação empírica - um campo onde se testa a experiência sensível do mundo. A sua prática plástica, que atravessa o desenho, a pintura e a instalação, opera como uma arqueologia intuitiva de gestos e atmosferas, em busca de sentido no que é, por vezes, incoerente, fragmentado ou aparentemente banal.
Através de uma paleta cromática surda e temperada, nasce um universo onírico, povoado de objetos suspensos num limbo entre o real e o ficcionado. Elementos da vida mundana são representados não como ilustrações do visível, mas como subtis insinuações que provocam o observador, levando-o a questionar a dimensão da realidade e a verosimilhança das coisas.
Num plano picado, um pequeno grilo atravessa um ramo da copa de uma árvore, em direção a um destino incerto, cuja sombra se projeta (ou reflete) num abismo verde. Essa ponte cujo outro extremo desconhecemos, parece surgir de um buraco branco – uma mancha de tinta opaca que aguça a curiosidade. Num quarto vazio, solitária, uma vela acesa ocupa o centro da composição, libertando um fio de fumo que se solidifica e conduz o olhar até ao teto do quadro, para lá do que nos é possível ver e perceber. Numa cena distinta, um ponto de luz ilumina o centro de uma mesa posta, onde as maçãs, aparentemente dispostas com rigor, ocupam cada prato. A delicadeza com que são pintadas contrasta com o espaço envolvente: rude, fendido, em ruína.
Não é possível identificar com precisão os espaços e lugares representados, que inquietam pela sua carga simbólica e transportam o espectador para paisagens simultaneamente interiores e exteriores, de ressonância surrealista. O quotidiano torna-se matéria de desvio e de estranheza, onde cada elemento parece ocupar um lugar provisório, quase metafórico, entre a presença e a ausência. A coerência da linguagem de Rúben Fernandes reside precisamente nessa recusa da fixação - uma delicadeza crítica que perturba o óbvio.
Investigação e criação de textos de apoio à curadoria: Leonor Guerreiro Queiroz
Cortesia: Paulo Amaro e Galeria Mais Silva