@samuel.jm.silva

Samuel Silva

Num toque delicado e restaurador, Samuel Silva (n. 1983, Portugal) evoca a obra de Daniel Faria (n. 1971 - 1999, Portugal) como um convite à redescoberta de uma ética que repara e restabelece a nossa relação com o mundo – onde cada pequena coisa, aquilo que parecia perdido ou insignificante, ressurge e ganha novo valor. A escrita do poeta-monge não se limita ao conteúdo: é também um texto-visual, onde o ato de escrever se torna matéria, superfície e textura – um enigma que nos toca pelo seu mistério e pela sua força silenciosa. 

Sob uma cúpula central, revela-se a instalação escultórica de Samuel Silva. Da obra Cóclea, nasce uma escuta litúrgica e subterrânea, como que filtrada pelo sangue da palavra. Suspensa na bruma de um espaço saturado de silêncio e densidade, a peça de chumbo – evocando a anatomia íntima do ouvido e os labirintos da escuta – paira entre o visível e o ausente. Aquela massa informe envolta em névoa e luz vermelha, convoca o espectador a entrar num tempo lento, quase sacramental, onde o som se torne visível e onde o corpo escuta com o que não se vê, como quem ouve o mar dentro de um búzio. A sua sombra projetada naquele céu rubro é circundada por uma aura dourada, atravessada por raios de luz que emergem de uma superfície insólita.

O escultor desenha uma instalação poética, onde os versos de Daniel Faria se materializam, ampliando o misticismo e a fascinação que atravessam a sua poesia. A reverberação do poema-objeto, O País de Deus, esse rolo manuscrito que se desenrola como escritura e oferenda, som e ocultação, memória de um gesto cerimonial e íntimo.

O olhar do poeta estende-se, assim, para lá das palavras: a sua poesia, inscrita na tradição experimental portuguesa, resgata o desenho do texto, o espaço da página, os sinais que respiram entre as palavras, recuperando essa ancestral genealogia gráfica que vai da Idade Média aos vanguardistas da poesia concreta. Ao deslocar o sentido do dito para o visível, o poeta devolve ao leitor a experiência sensível da escrita, obrigando-nos a olhar e a sentir o corpo da palavra antes que o seu significado a preencha.

Aqui, a palavra pode ainda ser. Pode ser forma, imagem, fragmento, gesto. A poesia de Daniel Faria é um ato de abertura – à escuta da página, à materialidade do texto, à presença do vazio. E, nesse espaço vibrante, somos convidados a restaurar – talvez pela primeira vez – a nossa atenção ao que habitualmente se ignora: o pequeno, o quieto, o pulsátil. “Tudo, em Daniel, pode ainda ser.”

Investigação e criação de textos de apoio à curadoria: Leonor Guerreiro Queiroz