Poesia

breve manual para ser humano

Nuno Félix da Costa

liberdade

Acordei sem necessidades – nem fome nem sujo ou frio

Não penso em dinheiro nem elegerei uma minoria como tema

político do dia. Sou um planeta distante, confluência de luzes

que abandonaram a Terra e poucos navegadores visitam

A música afunda-se nas paredes: o meu interior

é uma graduação de escuros, teto onde o fumo

que se deposita me constitui

Fecho os olhos para as personagens não chocarem

Todas querem ir mais longe – e vão

Coreografaram a vida para o teatro da utilidade

Usurpando o lugar de Deus vemos a nossa imperfeição

Do cume da montanha vemo-lo perdido. Não deixarei a situação

agravar-se tanto. Adapto as coisas ao lugar leve das estrelas

e que os seus frutos nos deliciem

pensando as coisas

Para se perceber como as coisas acontecem pensamo-nos

pescadores com longos apetrechos fisgando raras hipóteses

Tentamos agarrá-las com as palavras que fazem acontecer o que

desejamos – a retórica submerge na luz que talha as sombras

nas ruas. A eletricidade que a substitui anuncia a passagem

do não acontecido ao indefinido

Por engano ou esfaimado, o peixe morde a isca

Se o pescador adormece evita-se o triste desfecho de

as coisas acontecerem. Além do sono, o esquecimento e a ilusão

afetam o impacto das coisas umas nas outras. A memória porta-se

como coisa não acontecida, coisa expectante, nirvana de recheios

desprogramados criando o seu caleidoscópio. Júbilos imóveis,

pura indecisão metafísica de seguir uma ordem pressuposta

Segui-la para que o delírio de causas morda a isca

a questão da primazia

Deverei limpar o meu inconsciente se precisar de falar verdade?

Ao que dar primazia? À verdade na luz enovelada ou à nobreza

obscura, o fantasma nunificando-se e desnunificando-se e eu, o ator

cada vez mais intérprete? O inconsciente é límpido como a rocha

das avalanches canta a beleza que as sombras não acompanham

e, como o barro, modela até a dor e as nuvens dos augúrios,

mas essa cega limpidez parece um sujo irremovível

Amordaçar o eremita para o cavaleiro dos crimes avançar bramindo

os salmos do desejo? Ou para a morte, inevidente e deslaçada,

florescer nos prados da memória? No riacho da voz os punhais

ventam: início das coisas ou o que as determina?: Eu abro o espaço

onde as coisas são, e nada são. Abro a narrativa do que vi e nada vi

Abro-me à música que ouço e desnunificando o meu olhar vejo

nunca precisar da verdade que servisse mas da que descubro

a consciência é alemã

Só um humano, provavelmente alemão,

poria o problema de como as coisas aparecem

na consciência. Para tudo o resto que é consciente

ela não existe sem as coisas tal como um abismo

implica uma ponte e o vento traz visões insípidas

No fundo, uma humidade de útero magnético atrai

coisas identificadas às cegas – familiar estranheza

de todos os mundos serem possíveis (e impossíveis

pelas mesmas razões). Da vasta consciência o dono

recebe o seu real em peças de charada. Sabe-a

gotas de uma oceânica imensidão e caminha

Alguns caem, bêbedos tropeçam num obstáculo

mas ninguém descrê da própria consciência – antes

desata os nós que emaranham a sua verdade

poema da aurora que a luz

não rompe completamente

Sonolentamente, a madrugada, sou uma configuração da luz,

parca incidência em coisas difíceis de afirmar: as luzes do porto,

a estrada vazia diante dos faróis do carro. Tudo desaparece

Uma cidade forma-se de vozes soltas – e desaparece

Habitamos a espessura coletiva do seu opaco sono. Se a palavra

a ilumina tornamo-nos no jogo de luzes sobre o seu vazio,

um sono que não adormece e de que não se desperta

É quando os minutos nos ossos duram, como o betão da cidade

sustenta os muros em que embatemos. Entorpecidos no excesso,

é difícil defendê-lo. Vivemos na expectativa de um estado incógnito,

mas fazemos batota. Inventamos o desejo e as regras do jogo

Quebramo-las contra o luar – insuportável tristeza da plenitude

A madrugada é uma etapa das coisas

quando os raios trazem vaza a transparência

sem palavras para uma teoria

da simplicidade

A visão da palavra antecede-a

É assim o fundo do mar onde a luz que

cada uma emite encontra o alvo – sinos

que mantêm silencioso o pensamento

A mentira não existe entre os peixes

do inconsciente

maior e menor

Isto é a poesia menor das misérias diárias,

a intimidade insignificante que não distingue pessoas

A poesia maior é a da bravura imprópria dos sem-abrigo,

como eu cuja difusa alma executa as insignificâncias

dos heróis, mas eu não me exponho à glória e morrerei

de doenças precoces como um poema nunca lido

A poesia menor das viroses, das comichões e da muda

aspirina tão natural também, não é maior a sua harmonia

insignificante? Uns dizem sim, outros, que a poesia

maior é a que ninguém lê, a felicidade demasiado difícil

dos que têm todas as horas do dia sem abrigo e têm,

contudo, uma poesia cor-de-rosa «feliz para sempre»

Trauteada ao adormecer abre-se numa epopeia

sonhada triunfante e translata

o eu é lento e pouco conclusivo

«Tempus edax rerum», não lembro bem

o que significa, mas duvido dos efeitos diretos

do tempo. O tempo não tem boca que sopre

como o vento ou cujo hálito ácido carcoma

as muralhas da memória. É esta que sopra

nomes errados, que nos ameaça com raios

gigantescos enquanto o tempo – minhoca

que come o próprio corpo e se refaz,

existe ou não ao sabor do que ignoramos

O tempo é o que ignoramos quando falha

o coração, o rim, o pulmão derretido pelo fumo

Quando, bolorento livro, a casa cai e a mente

como um cavalo cansado, pensa-me cansado

Mas não é repouso, a música que acaba

indulgência com o dia que começa

É preciso demorar a levantar, prolongar a abertura da janela

O vento hesita antes de o percebermos vindo do norte ou do mar

Os olhos que pareciam colados ao escuro, por instantes são sonhos,

espelhos densos que sabemos se fragmentarão e ao saírem da boca

criam as órbitas dos astros, o brilho das estrelas e – finalmente,

o resto do cosmos