liberdade
Acordei sem necessidades – nem fome nem sujo ou frio
Não penso em dinheiro nem elegerei uma minoria como tema
político do dia. Sou um planeta distante, confluência de luzes
que abandonaram a Terra e poucos navegadores visitam
A música afunda-se nas paredes: o meu interior
é uma graduação de escuros, teto onde o fumo
que se deposita me constitui
Fecho os olhos para as personagens não chocarem
Todas querem ir mais longe – e vão
Coreografaram a vida para o teatro da utilidade
Usurpando o lugar de Deus vemos a nossa imperfeição
Do cume da montanha vemo-lo perdido. Não deixarei a situação
agravar-se tanto. Adapto as coisas ao lugar leve das estrelas
e que os seus frutos nos deliciem
pensando as coisas
Para se perceber como as coisas acontecem pensamo-nos
pescadores com longos apetrechos fisgando raras hipóteses
Tentamos agarrá-las com as palavras que fazem acontecer o que
desejamos – a retórica submerge na luz que talha as sombras
nas ruas. A eletricidade que a substitui anuncia a passagem
do não acontecido ao indefinido
Por engano ou esfaimado, o peixe morde a isca
Se o pescador adormece evita-se o triste desfecho de
as coisas acontecerem. Além do sono, o esquecimento e a ilusão
afetam o impacto das coisas umas nas outras. A memória porta-se
como coisa não acontecida, coisa expectante, nirvana de recheios
desprogramados criando o seu caleidoscópio. Júbilos imóveis,
pura indecisão metafísica de seguir uma ordem pressuposta
Segui-la para que o delírio de causas morda a isca
a questão da primazia
Deverei limpar o meu inconsciente se precisar de falar verdade?
Ao que dar primazia? À verdade na luz enovelada ou à nobreza
obscura, o fantasma nunificando-se e desnunificando-se e eu, o ator
cada vez mais intérprete? O inconsciente é límpido como a rocha
das avalanches canta a beleza que as sombras não acompanham
e, como o barro, modela até a dor e as nuvens dos augúrios,
mas essa cega limpidez parece um sujo irremovível
Amordaçar o eremita para o cavaleiro dos crimes avançar bramindo
os salmos do desejo? Ou para a morte, inevidente e deslaçada,
florescer nos prados da memória? No riacho da voz os punhais
ventam: início das coisas ou o que as determina?: Eu abro o espaço
onde as coisas são, e nada são. Abro a narrativa do que vi e nada vi
Abro-me à música que ouço e desnunificando o meu olhar vejo
nunca precisar da verdade que servisse mas da que descubro
a consciência é alemã
Só um humano, provavelmente alemão,
poria o problema de como as coisas aparecem
na consciência. Para tudo o resto que é consciente
ela não existe sem as coisas tal como um abismo
implica uma ponte e o vento traz visões insípidas
No fundo, uma humidade de útero magnético atrai
coisas identificadas às cegas – familiar estranheza
de todos os mundos serem possíveis (e impossíveis
pelas mesmas razões). Da vasta consciência o dono
recebe o seu real em peças de charada. Sabe-a
gotas de uma oceânica imensidão e caminha
Alguns caem, bêbedos tropeçam num obstáculo
mas ninguém descrê da própria consciência – antes
desata os nós que emaranham a sua verdade
poema da aurora que a luz
não rompe completamente
Sonolentamente, a madrugada, sou uma configuração da luz,
parca incidência em coisas difíceis de afirmar: as luzes do porto,
a estrada vazia diante dos faróis do carro. Tudo desaparece
Uma cidade forma-se de vozes soltas – e desaparece
Habitamos a espessura coletiva do seu opaco sono. Se a palavra
a ilumina tornamo-nos no jogo de luzes sobre o seu vazio,
um sono que não adormece e de que não se desperta
É quando os minutos nos ossos duram, como o betão da cidade
sustenta os muros em que embatemos. Entorpecidos no excesso,
é difícil defendê-lo. Vivemos na expectativa de um estado incógnito,
mas fazemos batota. Inventamos o desejo e as regras do jogo
Quebramo-las contra o luar – insuportável tristeza da plenitude
A madrugada é uma etapa das coisas
quando os raios trazem vaza a transparência
sem palavras para uma teoria
da simplicidade
A visão da palavra antecede-a
É assim o fundo do mar onde a luz que
cada uma emite encontra o alvo – sinos
que mantêm silencioso o pensamento
A mentira não existe entre os peixes
do inconsciente
maior e menor
Isto é a poesia menor das misérias diárias,
a intimidade insignificante que não distingue pessoas
A poesia maior é a da bravura imprópria dos sem-abrigo,
como eu cuja difusa alma executa as insignificâncias
dos heróis, mas eu não me exponho à glória e morrerei
de doenças precoces como um poema nunca lido
A poesia menor das viroses, das comichões e da muda
aspirina tão natural também, não é maior a sua harmonia
insignificante? Uns dizem sim, outros, que a poesia
maior é a que ninguém lê, a felicidade demasiado difícil
dos que têm todas as horas do dia sem abrigo e têm,
contudo, uma poesia cor-de-rosa «feliz para sempre»
Trauteada ao adormecer abre-se numa epopeia
sonhada triunfante e translata
o eu é lento e pouco conclusivo
«Tempus edax rerum», não lembro bem
o que significa, mas duvido dos efeitos diretos
do tempo. O tempo não tem boca que sopre
como o vento ou cujo hálito ácido carcoma
as muralhas da memória. É esta que sopra
nomes errados, que nos ameaça com raios
gigantescos enquanto o tempo – minhoca
que come o próprio corpo e se refaz,
existe ou não ao sabor do que ignoramos
O tempo é o que ignoramos quando falha
o coração, o rim, o pulmão derretido pelo fumo
Quando, bolorento livro, a casa cai e a mente
como um cavalo cansado, pensa-me cansado
Mas não é repouso, a música que acaba
indulgência com o dia que começa
É preciso demorar a levantar, prolongar a abertura da janela
O vento hesita antes de o percebermos vindo do norte ou do mar
Os olhos que pareciam colados ao escuro, por instantes são sonhos,
espelhos densos que sabemos se fragmentarão e ao saírem da boca
criam as órbitas dos astros, o brilho das estrelas e – finalmente,
o resto do cosmos