Conversa

Conversa

Ricardo Ramos Gonçalves conversa com Manuel Santos Maia

Esta edição da Bienal de Arte Contemporânea da Maia teve como tema o fulgor, partindo das leituras de Maria Gabriela Llansol. Como é que este conceito nos convoca?

Fulgor é uma ideia central na obra de Maria Gabriela Llansol – uma espécie de brilho que resiste ao apagamento, que aponta para momentos de revelação, de intensidade e de transformação. São instantes de vibração do "Vivo", que me interessam profundamente no ato criativo em geral e, mais amplamente, na experiência de viver. Não sendo algo estável ou contínuo, a fulguração é um momento de perceção ampliada. Uma metamorfose súbita que interrompe a narrativa linear e nos coloca num tempo outro, numa espécie de suspensão. É nesse espaço descontínuo que, muitas vezes, nasce o gesto artístico.  Vejo este conceito como uma forma de resistência e de insistência em sentir, em expressar-se com intensidade, em contrariar a anestesia do quotidiano. E essa luta, para mim, atravessa tanto o processo criativo como o modo como habitamos o mundo. Na obra de Llansol – e na de muitos outros criadores com quem me sinto em diálogo – encontro uma partilha generosa do mistério, do esplendor. Uma partilha fragmentária, sim, mas que nos convoca: interpela-nos e desafia-nos a encontrar o nosso lugar nesse universo que se abre.  A ideia do «projeto do humano» percorre toda a sua escrita. É uma tentativa de reconfigurar o que entendemos por "ser humano", uma resistência a um mundo que permanece igual nas suas desigualdades. Ao recentrar a questão do humano e propor uma nova leitura da História – e, com ela, uma outra noção de comunidade, que se afasta das formas mais convencionais de sociedade ou gregarismo –, Llansol propõe também uma leitura política da criação. E isso, para mim, é profundamente inspirador.

Como é que moldou a proposta curatorial para a bienal?

Para a bienal interessou-me resgatar a complexidade desse universo. Sempre me interessou mais a complexidade do que as tentativas de simplificação – e devolver essa complexidade é, de certa forma, fazer justiça ao mundo em que vivemos hoje. Em muitos sistemas ditatoriais, que agora vemos ressurgir, o que acontece muitas vezes é precisamente uma simplificação até ao ponto de tudo se reduzir apenas a dois lados. Nas artes plásticas, o modernismo quis também simplificar: o pintor fazia pintura, o escultor fazia escultura, o realizador fazia cinema, e por aí em diante. Mas não é assim que devemos entender os artistas contemporâneos, cuja prática é multidisciplinar e ligada a múltiplas pulsões: pintor também pode criar obras pictóricas sem usar as tintas, os pincéis e os suportes, assim como o escultor também pode criar escultura convocando a fotografia ou a imagem em movimento ou qualquer outra área artística ou o realizador poderá criar uma instalação com imagens fixas ou em movimento, especializando o seu filme. O artista contemporâneo poderá convocar, numa única criação, diversas áreas artísticas numa prática interdisciplinar.

Remetendo a Llansol, são artistas fulgurantes? 

Sim, remetendo a Maria Gabriela Llansol, diria que sim – são artistas fulgurantes. No sentido em que o fulgor, na sua obra, não é apenas brilho ou intensidade momentânea, mas a emergência de uma potência: a criação enquanto ato de revelação, de transformação, de desvio face ao curso previsível das coisas. Ser fulgurante é criar a partir da potência – daquilo que ainda não se tornou ato, mas que carrega em si a possibilidade de uma outra realidade. É tocar a “restante vida”, como Llansol escreveu – essa vida que não é simplesmente o tempo que nos resta, mas aquilo que ainda não foi vivido, que aguarda por um gesto, por uma forma, por um olhar que o traga à luz. O artista fulgurante é aquele que se emancipa das coordenadas convencionais de tempo e espaço, que entra num espaço mais denso, mais livre, onde a criação não é apenas representação do real, mas experimentação do real possível. E isso implica, muitas vezes, abandonar a ilusão de tudo compreender – abrir mão da segurança lógica e entregar-se à disponibilidade radical para o que ainda não é. Llansol escreve num presente onde todos os passados se encontram sob a forma do futuro. Um futuro que não é antecipação nem desejo, mas um tempo que já se inscreve no gesto criador. E os artistas fulgurantes operam a partir desse lugar: um presente pleno, onde se tornam médios de algo que ainda não conhecem completamente, nem precisam de conhecer para que possa emergir. É nesse sentido que o fulgor é também resistência – à normalização do mundo, à repetição das formas, à superficialidade do gregarismo. A obra, quando verdadeira, é sempre vinda de um tempo outro, e traz consigo o murmúrio do Ser, os restos do Humano ainda por desabrochar – na história, na biografia, na experiência comum. Por isso, sim, são fulgurantes enquanto criadores que habitam esse espaço de despossessão e intensidade, que não se limitam a olhar o mundo, mas que o tornam visível de novo. Criam a partir de um futuro que nos antecede, um desconhecido que, por instantes, se deixa ver através da obra.

Sendo que, no caso de Llansol, tem uma ligação muito íntima ao texto.

Sim, sem dúvida. Parte, digamos, da ideia de texto, mas é bastante ampla. A mim, interessava-me transpor isso, de alguma forma, para as artes plásticas, e para a forma como vejo todas as artes, da música à pintura, passando pelo cinema. São, no fundo, artes contemporâneas. Tendo em conta essa visão, existe esta ideia de que tudo é complexo, e respeitar isso, ou seguir por aí, é uma possibilidade de nos confrontarmos com múltiplas realidades que constituem o real. Hoje, tal como no passado, emergem ditaduras que apelam à simplificação, de tal forma que, por vezes, ficamos reduzidos a uma situação binária. Há, digamos, um empobrecimento. Voltando à abordagem que ela tem relativamente ao texto: para Llansol, escrever e ler complementam-se e confundem-se. Ler não será apenas decifrar palavras, mas será, também, uma forma de "escrever" o texto, de iluminá-lo e de criar sentidos. Escrever, por sua vez, é uma forma de ler o mundo e a própria experiência.

Fulgor é, nesse sentido, uma forma de libertação?

Recordo, desde logo, a frase de Clarice Lispector, que foi também uma referência para esta bienal: “Arte não é pureza; é purificação, não é liberdade; é libertação”. Mas respondendo à questão: sim, para quem cria, o fulgor é uma libertação do olhar condicionado. É o instante em que a forma se desprende do esperado e algo se revela, fora do controlo da intenção. Nesse momento, o gesto deixa de obedecer ao discurso prévio e passa a escutar a matéria, o silêncio, o intervalo. Liberta-nos da obrigação de representar o mundo tal como é, e convida-nos a expor o que ainda não tem nome – uma visão que, por um instante, rasga o plano visível e dá a ver outra possibilidade do real. Essa é, talvez, a função mais profunda da arte: abrir espaço ao que ainda não aconteceu.

Abrir espaços e caminhos?

Precisamente. E a propósito dessa ideia, sublinho também a ideia de primavera, onde tudo renasce. A ideia de fulgor remete para esse estado em que, por vezes, estamos adormecidos, em pousio – e algo fulgurante desperta em nós esse renascimento. Nesse sentido, todas as obras reunidas na bienal interpelam-nos. Somos lidos por elas e renascemos com elas. Estamos longe de qualquer tentativa de total compreensão ou linearidade que, muitas vezes, nos é exigida no panorama artístico. Aqui, pelo contrário, somos mais livres para abordar essas obras, mesmo que as entendamos apenas em parte: seja pelo processo, pela técnica, pela forma como foram feitas, ou pelo que nelas está inscrito. Há, neste contacto com as obras, o gosto e o prazer da descoberta. Voltando à metáfora da primavera – é algo profundamente inscrito na nossa cultura, esse renascer. Está muito presente também no trabalho da artista Madalena Folgado, que parte do filme O Rei das Rosas (1986), de Werner Schroeter, para evocar uma manifestação popular que ocorre após a Páscoa. Estamos em plena primavera – e quem anda pelos campos nessa altura sente a vida e a beleza a brotar. Mas sabe também que isso é transitório, e por isso deve ser vivido plenamente, no momento. Basta estarmos num lugar, passearmos por ele, para sermos impactados. Essa beleza, essa força, manifesta-se. E em muitas destas obras, quis que houvesse essa força e que esta nos inundasse. Para isso, há estratégias: por exemplo, o facto de muitas delas oscilarem entre a figuração e a abstração, entre o formal e o informal; ou o facto de algumas parecerem até naïf. Mas esse naïf não o entendo como algo negativo, pelo contrário. É, como diria Llansol, um pacto de desconforto. Este exige, não necessariamente grande erudição ou preparação filosófica, mas sentidos despertos e disponibilidade para o novo - que não se confunde com a novidade, mas que abre horizontes sucessivos. É uma abertura: qualquer pessoa que sinta essa pulsão para criar e para ver mais, deve fazê-lo. Está intimamente ligado à urgência de fazer, à “potência de agir”, para Llansol.

Nesse sentido, a arte contemporânea carrega esse espírito do fulgor?

Sim, o fulgor na criação artística tem precisamente a ver com essa escolha de fazer ligações, de abrir percursos, de permitir que cada pessoa decida como se quer ligar às obras e não ser formatada à partida. É um gesto político. As anteriores bienais eram políticas, mas esta também o é, ainda que de forma diferente. É político porque, num tempo em que somos esmagados por uma realidade tantas vezes negativa, que nos reduz a capacidade de imaginar, de sonhar, de ter prazer, de gostar de nós próprios, do mundo, do lugar que ocupamos e da possibilidade de contribuir – esta bienal e estas obras devolvem-nos a possibilidade de rebater essa opressão. Uma obra pode, claramente, dizer a alguém: tu também podes sonhar, podes fazer a tua viagem, podes alegrar-te, confrontar-te contigo próprio – e só isso já é uma forma de o tornar mais cidadão, mais presente, mais inteiro. Esta bienal foi feita para quem está disposto a descobrir-se, a sonhar mais, a seguir as suas inquietações. Na edição anterior falava da ideia de que há hoje muito medo – medo da festa, da cor, da complexidade, do híbrido, do múltiplo. Aqui, ao vermos uma determinada obra, uma performance, uma composição musical, espelhamos-mos nela e descobrimos essa força em nós que se liberta do medo. Há um propósito eudemonista. A intenção de construir hipóteses de vida em que o objetivo é o da felicidade humana, a de “existências mais amplas” para Llansol, para além das noções correntes do humano. As obras propõe e exprimem a necessidade de derrubar muitas barreiras.

Abordas a experiência das bienais anteriores. Em que medida é que esta edição dá continuidade a esse caminho iniciado?

A Bienal de Arte Contemporânea da Maia de 2025 reconhece e reafirma a importância da cultura na Maia e o seu contributo a nível regional e nacional. Dando continuidade a um percurso de 25 anos de ações culturais no município da Maia, entendemos as manifestações culturais como um bem comum que, pertencendo a todos, deve chegar a todos. Amparados pelo pensamento de Antonio Monegal, em “Como o Ar que Respiramos. O Sentido da Cultura”, assumimos, tal como na edição de 2021, a cultura enquanto atividade intrinsecamente política, indissociável do nosso lugar e intervenção na sociedade. Assim como na edição de 2023, encaramos a cultura como um bem que nos permite refletir sobre o presente e sobre os desafios da existência no futuro próximo. Na edição de 2025 da bienal, libertos do medo que permeia determinados discursos, vislumbramos um futuro mais plural, inclusivo, desafiante e, simultaneamente, inventivo. Hoje, relacionamo-nos com repertórios culturais diversos e distintos dos nossos. Valorizamos a nossa orientação no mundo numa relação com os outros. Sendo o resultado de uma série de cadeias de relações, as sociedades são culturalmente miscigenadas e abertas. A cultura, presente nas várias dimensões da nossa vida, embora por vezes de forma invisível, abre-se a outros caminhos. Se o mundo da cultura é o mundo, também é verdade que o mundo não existe apartado ou fora da cultura. A Arte Contemporânea revela novos contornos para a cultura. As criações dos diversos artistas reunidos nesta edição interpretam e ajudam-nos a perceber um mundo cada vez mais complexo e exigente. Refletem a nossa necessidade de imaginar o futuro e devolvem-nos a forma como percecionamos o passado e o nosso lugar no mundo, expondo uma visão coletiva e a nossa capacidade de construção cultural.

Mantendo sempre um lado jovial que a bienal carrega consigo desde o princípio?

Sim, como dizes, a bienal realiza-se desde os anos de 1990. Inicialmente, tinha outra designação: Bienal de Arte Jovem da Maia. Tinha, portanto, um foco maior nas criações de artistas mais jovens. Contudo, em todas as edições em que fui convidado a participar – 2015, 2021, 2023 e esta – procurei sempre convocar artistas cuja obra, para mim, continua a manter um certo fulgor, que também associo a uma ideia de juventude. Daí eu dizer que a Bienal ainda conserva esse espírito. Em 2015, por exemplo, uma das figuras centrais foi o realizador Manoel de Oliveira. Essa escolha prendeu-se com o facto de vários artistas, direta ou indiretamente, dialogarem com a sua obra. Interessa-me este tipo de obras que muitos consideram pertencer ao passado, mas que, na verdade, continuam ativas no presente – ou até projetadas no futuro. O mesmo aconteceu com Silvestre Pestana, que também esteve no centro de uma exposição. Foi um artista que, durante muito tempo, não teve um olhar retrospetivo atento sobre a sua criação. Anos mais tarde, Serralves fez-lhe justiça com uma grande retrospetiva. Sempre foi um artista muito experimental, que esteve à frente do seu tempo. Gosto de referir estes exemplos, porque são artistas cuja obra parece vir do futuro. Isso é muito llansoliano. Acredito que, de algum modo, a imagem, o gesto, o som, as palavras vêm do futuro – e que usam o passado apenas para se inscreverem no presente. Llansol expressa isso muito bem: só mais tarde nos apercebemos de que tudo já tinha acontecido no futuro. São obras que não conseguimos reduzir a uma só leitura – transformam-se. E é essa transformação que se verifica nesta bienal. Refletir sobre os modos como o tempo e a memória (que é do passado e do futuro) se configuram na obra e ou como nela os tempos se confundem e se anulam. Para Llansol “o futuro é uma origem”. A criação procura essa origem.

Portanto, esta bienal não fecha um ciclo, mas culmina numa experiência onde as últimas bienais se agregam.

Justamente. A de 2021 primeira abordava a ideia de ágora. Interessava-me esse espaço de encontro, de cidadania ativa. Agora, podemos pensar numa ágora mais fulgurante, mais voltada para o futuro, onde quanto mais livres forem os cidadãos para contribuir com o sonho, com a imaginação, mais poderemos olhar para a realidade de forma crítica e construtiva. Na segunda, em 2023, o foco passou para os artistas enquanto cidadãos por excelência, porque expõem o seu pensamento através da obra, que apontam caminhos, que anunciam utopias possíveis e realizáveis. Nesta edição, trago artistas contemporâneos que trabalham a partir do lugar onde estão. E isso é fundamental. Há uma frase da Llansol que diz: “É minha própria casa, mas creio que vim fazer uma visita a alguém.” É a única frase numa página inteira, e diz muito. Só temos este mundo, só temos esta casa. Às vezes parece-nos esgotada – mas depende de como a vemos, de como a vivemos. Basta sairmos por instantes e voltarmos a entrar para a vermos de outra forma. E sim, podemos contribuir para transformá-la. Podemos pensar também noutras escalas: a rua, o bairro, a cidade, o país, o mundo. O mundo é o mesmo, mas importa regressar a ele com mais fulgor. Três bienais depois, há muitos discursos que procuram cortar o que é pequeno, íntimo, migrante. Mas o mundo sempre foi migrante, sempre mistura e está sempre em transformação. Hoje, apesar de podermos circular, a questão das migrações e das identidades continua central. E claro que há forças contrárias que ganham poder, mesmo que temporariamente. Nada está fixo. Vivemos num tempo líquido. Um tempo que, para Llansol, vive do paradoxo de uma «complexidade transparente», que permanentemente nos foge. Tudo é mais difícil de definir e, ao mesmo tempo, mais moldável. Um líquido adapta-se à forma do lugar onde se coloca. Interessa-me essa ideia: a fluidez, a complexidade, o não definível. Mesmo sem palavras certas, sabemos muitas vezes do que se trata, porque o experienciamos. Foi por isso que, na última bienal, convidei a poetisa e astróloga Júlia de Carvalho Hansen, que escreveu sobre este tempo líquido, onde tudo é mais difuso, mas também mais aberto. E é nesse espaço, entre o indizível e o vivido, que continuo a trabalhar.

A Bienal acaba por ser também um diagnóstico do que se passa à nossa volta, mas afirmando que ainda estamos num caminho de futuro.

Se no passado houve discursos que procuraram rotular as pessoas pela sua prática ou pela forma como criavam, a arte contemporânea hoje recusa essa limitação. Um pintor pode ser DJ, escritor, investigador – pode cruzar linguagens e práticas. Isso é fundamental. Sabemos que, em Portugal, durante muito tempo, a cultura reduziu os artistas a um só registo. O Ângelo de Sousa, por exemplo, foi durante anos conhecido apenas como pintor, mas tinha um trabalho fulgurante no desenho, na escultura, no vídeo, na fotografia. E ainda hoje, muitos desses artistas são lidos de forma segmentada. Trabalhando agora com jovens artistas, é claro que mesmo aqueles que se apresentam como pintores ou ceramistas têm práticas contaminadas por outras áreas. A maioria dos criadores que integram esta edição da bienal são artistas plásticos, sim, mas também trabalham com som, performance, investigação ou escrita. Isso diz muito sobre o tempo em que estamos – e sobre a liberdade criativa que queremos afirmar.

Há sempre este campo das interligações.

Exatamente. Podemos estar perante uma obra, mas ela é sempre maior do que parece. Por exemplo, apresentamos Malangatana, mas a escolha não se deve apenas ao seu trabalho como pintor. Serviu também para convocar o poeta que foi. O mesmo acontece com Ruben Zacarias, que é escritor e curador, ou o Samuel Silva, artista plástico e investigador. E temos casos como o de Nuno Félix da Costa, que é psiquiatra, fotógrafo e poeta e pintor. Ou posso ainda falar da Ece Canli ou da Isabel Carvalho que é uma artista visual, mas também uma investigadora e poetisa. E que aqui convoca o trabalho de Isabel Meyrelles artista que é, ao mesmo tempo, escultora, poeta e investigadora. Por tudo isto, cabe-nos alargar o olhar sobre essas práticas. Se fôssemos analisar cada um destes universos, perceberíamos rapidamente a complexidade das suas práticas. Por exemplo, uma das entradas na Bienal começa com obras de Efrain Almeida, seguidas de obras de Alberto Chissano, Malangatana e Nuno Félix da Costa. Essa sucessão não é aleatória – interessa-me precisamente a continuidade entre tempos, lugares e linguagens.

Ainda voltando à proposta curatorial: colocam-se questões como “como continuar humano?” ou “para onde foi o fulgor?”. A bienal procura resposta a estas questões?

Não. Essas perguntas não se colocam para serem respondidas de forma direta. Mas também não são perguntas sem resposta. A verdade é que a experiência vivida através das obras, e a realidade criada por cada artista, devolve-nos possíveis respostas. O ser humano é profundamente complexo. Ao reunir estas criações, revelamos essa complexidade e ampliamos o campo do que pode ser considerado humano. E voltando aos artistas: se o Efrain recupera práticas do passado – muitas vezes com uma dimensão religiosa –, o mesmo se pode dizer de Chissano, que traz consigo um saber herdado da avó, ligado a outros entendimentos do mundo, próximos do misticismo. Malangatana, também ele, dá conta de realidades que não são visíveis à primeira vista, mas que aporta para a sua pintura. E depois, ao lado desses, coloco um psiquiatra como Nuno Félix da Costa, que nos dá acesso a outras dimensões da psique. E o humano surge ainda noutras ligações em muitas das obras expostas – com animais, com o mundo, com a comunidade. Há uma ideia recorrente de círculo, de espiral, de pertença a algo maior. Essa dimensão está presente no trabalho de Bartolomeu Gusmão ou do brasileiro Manoel Quitério, que parte de referências da Índia, de África e do Brasil para criar cartas de tarot. Ao expô-las, cria-se uma leitura visual, mas também simbólica. São pinturas, mas também podem ser lidas como cartas. Como curador, não invalido essa leitura – pelo contrário, amplia o sentido da obra. Quem souber ler cartas, verá ali um outro caminho de interpretação. Voltando a Llansol, há nas obras realidades soterradas que só um futuro desvenda. Só ele dá a ver o que está à vista mas poucos veem, e por isso ainda não será de agora. 

No teu trabalho como curador, essas ligações surgem à partida ou apenas no momento de montagem?

Em ambos os momentos. Em curadoria, há uma primeira fase de seleção, seguindo-se depois a apresentação e a interpretação – são etapas inevitáveis e interligadas. Para mim, tudo começa com uma inquietação. Antes da seleção há quase sempre um vazio – uma sensação de que tudo está por fazer. Sempre trabalhei assim, desde os tempos da Faculdade de Belas Artes do Porto. É como ter uma folha em branco e perguntar: o que é que ainda se pode dizer, escrever, mostrar? Que contributo ainda posso dar enquanto curador face à realidade que vivemos? Em Portugal há muito por fazer no campo da cultura, das artes visuais, muito mais fora dos grandes centros. No caso desta bienal, a seleção começou assim. Olhei para as duas edições anteriores, para o presente artístico, e apercebi-me de que havia artistas que ainda não tinham entrado – e talvez nem pudessem ter entrado nas edições passadas. Questionei porquê. Que obras são essas? Que lugar ocupam? Essa ausência inicial foi o ponto de partida para construir uma resposta curatorial. Há também um processo de amadurecimento. Claro que, nesta edição, a leitura da Maria Gabriela Llansol foi fundamental. Foi quem mais chão me deu – mesmo que esse chão não seja estável ou seguro. Nunca procurei uma tese de um filósofo ou escritor para sustentar as minhas escolhas. Pelo contrário. Mas há muitos que me acompanharam: Clarice Lispector, por exemplo, e todo o seu pensamento em torno da liberdade.

Esse espaço de amadurecimento é essencial na tua curadoria?

Sim, precisamente. As minhas curadorias têm sempre algo de autobiográfico. Estão ligadas ao lugar onde trabalho, ao qual pertenço, aos lugares que respeito e onde quero crescer. E também partem dos meus gostos, das minhas afinidades. Eduardo Batarda, por exemplo, é um dos grandes artistas portugueses para mim. A sua obra coloca-me desafios constantes. É fulgurante. Cresço com ela. Ela permanece a mesma, mas diz-me coisas diferentes ao longo do tempo. É inesgotável – como certas obras musicais ou poéticas. Daí voltar a convocar a sua obra. Por outro lado, nesta bienal não se tratou apenas de projetar uma exposição. Foi preciso criar um programa que incluísse música, a palavra poética e, naturalmente, um diálogo com os jovens artistas. Porque só assim faz sentido.

Sempre entendeste que a bienal deveria aportar essa transdisciplinaridade?

A arte contemporânea já nos habituou a práticas interdisciplinares e transdisciplinares. Isso exige uma grande abertura, tanto da parte dos curadores como dos públicos. Essa abertura é, também, uma forma de respeitar os artistas contemporâneos. Estamos, aliás, a viver numa era onde os meios digitais e a inteligência artificial permitem cruzamentos constantes entre imagem, som, texto, movimento. É por isso que a Bienal não pode escapar a essa realidade.

Em termos práticos, qual foi o programa desta edição?

O programa da Bienal de Arte Contemporânea da Maia de 2025 apresentou, entre 3 de julho e 14 de setembro, uma diversidade de eventos que incluíram a exposição central, mostras de performances, ativações performativas de obras, performances gastronómicas, declamação de poesia, uma feira de publicações e múltiplos de artistas, uma exposição e intervenções no espaço público, concertos, residências artísticas, workshops e oficinas com arte-educadores, uma conversas com a investigadora Sheila Khan e visitas guiadas.  Paralelamente à pintura, escultura, cerâmica, videoarte, música, som, performance, design e literatura, as obras apresentadas na Galeria D. Manuel, no Fórum da Maia, cruzavam têxteis, cerâmica com criações geradas por sistemas de inteligência artificial, realidade virtual ou realidade aumentada. Novas tecnologias no campo das artes que têm vindo a integrar, recentemente, os programas de muitos espaços expositivos. Os cursos, oficinas e workshops, bem como formações com arte-educadores para diferentes públicos, foram realizados antes e durante a Bienal.  As residências artísticas, que visam, não só, a criação de obras para a Bienal, ocorreram em diversos espaços de residência artística no país, na Maia, no Porto, em Arraiolos, São Miguel d’Acha e na Tojeira. A bienal constitui-se como um centro para o qual convergiram criações com marcas culturais distintas, realizadas em vários locais do país, enquanto, durante o período das residências, marcou presença nesses mesmos locais.  A ativação das instalações, os concertos, as performances – entre as quais récitas ou declamações, seguindo a forma de arte literária ou performance artística – o registo da exposição, através de desenho de observação direta por uma comunidade de Urban Sketchers e o registo fotográfico por um coletivo informal de fotógrafos (que organizam encontros fotográficos – o Meetup Fotográfico), e a troca de impressões sobre a bienal numa conversa entre pessoas a tricotar em público, constituíram momentos de aprendizagem, partilha, criação e liberdade que foram experienciados durante a inauguração. As experiências artísticas que relacionam o comer e a arte contemporânea realizaram-se em três momentos, combinadas com instalações ou performances artísticas. Estas propostas artísticas, testemunhadas, experienciadas e partilhadas por diferentes públicos, representaram um desafio cultural e gastronómico que pretendeu refletir a cultura portuguesa. De igual modo, as formações orientadas por artistas empreenderam um debate sobre a liberdade na criação artística e a interseção entre práticas artísticas, arte popular e arte contemporânea. O mobiliário urbano informativo, os outdoors e mupis do centro da cidade nas imediações do fórum, acolheram e apresentaram imagens sensíveis, criadas por artistas, que interpelaram o cidadão.

Comecemos pela exposição no Fórum da Maia. Qualquer visitante que entrou nesta bienal ao longo destes meses tinha pela frente um percurso polimórfico, que podia assumir muitas formas. Que percurso foi este?

Na bienal anterior, estruturámos o percurso por vários temas, como identidade ou ambiente, por exemplo. Nesta edição, o espaço expositivo em si impôs-se como elemento central. Distribuir e espacializar as obras já é um desafio por si só. Além disso, há um detalhe importante: existem duas entradas. Isso significa que automaticamente teremos dois percursos diferentes. À primeira vista, isso poderia parecer uma dificuldade, mas pode também ser uma mais-valia. Falando da composição no espaço: uma entrada fica mais próxima do metro aí o visitante era recebido por um bar, uma obra do Renato Ferrão, que é um móvel especial. Sabemos que muitos móveis ao longo do tempo tendem a ser imóveis, mas este móvel mantém a condição de móvel, recusando-se a ficar preso a um canto. Está cheio de garrafas de bebidas alcoólicas mas há também o elemento da água que cai, criando uma espécie fonte, que estabelece um diálogo direto com duas obras de referência. Uma delas é do Marcel Duchamp, que ao pegar num urinol, inverte-o e atribui-lhe o nome de fonte. Outro artista, Bruce Nauman, anos depois, faz um autorretrato libertando da sua boca um jato de água e, num vídeo diz: o verdadeiro artista é uma maravilhosa fonte luminosa. Esta entrada funcionou como uma introdução simbólica: estes artistas são fontes, fontes de várias realidades, e o móvel representa essa ideia de algo que não está preso, que se abre ao espaço. Logo a seguir, tínhamos uma obra da Isabel Carvalho, que convocava a escultora e poetisa Isabel Meyrelles. Isabel Meyrelles ao olhar para desenhos do Cruzeiro Seixas, questionava: “Como serão as costas destes desenhos?” Então, essa primeira entrada não foi só uma porta de entrada, mas um convite à imaginação, que levantava questões e preparava o visitante para o que vinha a seguir.  Ainda nesta entrada, que dá acesso à biblioteca e às galerias, abriu-se um universo poético, também ligado a outras geografias. Este diálogo entre arte visual e literatura foi um eixo constante ao longo da Bienal. Ao longo do percurso, pudemos encontrar obras de jovens artistas e poetas, como o pintor e escritor Rúben Zacarias, além de nomes como Malangatana e Nuno Félix da Costa. Também convidei poetas como a Maria Brás ferreira ou a Andreia C. Faria a escrever e artistas, como o Samuel Silva, cuja obra dialoga com a do poeta Daniel Faria. Mas houve também muitos outros, cujas obras remetiam para uma dimensão mais surrealizante.

Chegados à sala central, além de Eduardo Batarda, havia também os trabalhos de Ana Manso e André Romão.

Sim. Quando vi uma exposição da Ana Manso num diálogo com o André Romão, percebi que queria que esse diálogo se prolongasse aqui. Gosto muito desses momentos em que um discurso se prolonga no outro, em que uma obra encontra corpo noutra, em que há uma espécie de eco e contaminação mútua. A partir desse encontro, imaginei dois polos: Ana Manso e André Romão de um lado, Eduardo Batarda do outro. E então surgiu a questão: o que colocamos entre eles? No ano passado, concebi uma exposição apresentada na Galeria Graça Brandão, em Lisboa, com três artistas muito distintos – o André Sousa, o Nuno Ramalho e o Sérgio Leitão – mas com várias ligações em comum. Foi, de certa forma, um primeiro ensaio para o que aqui foi apresentado. Foi daí que convoquei então o trabalho de Pedro Moreira, Onree, um conjunto de peças maconde da Reinata Sadimba, Merina Amade e Julia Nacheque, espaço esse ladeado por obras de Rui Castanho, Francisco Vidal e Franciso Trêpa, entre outos que davam continuação ao percurso.

A exposição equilibrava-se entre artistas consagrados com outros em início de carreira. Esse equilíbrio é importante para ti?

É curioso usares a palavra equilíbrio. Interessa-me, acima de tudo, o fulgor das suas obras, e isso não depende da idade nem da fase da carreira. O fulgor é sempre jovem. Quando olho para uma obra do Eduardo Batarda, parece-me sempre nova. Como um poema que se relê e nos surpreende como se fosse a primeira vez. Esse olhar já vem de trás, da minha prática como curador. Quando trabalhei com o Silvestre Pestana percebi que muitos artistas atuais estavam a fazer coisas que ele já fazia há décadas – e ainda assim o seu trabalho permanecia pouco conhecido no meio artístico. A mesma reflexão apliquei ao Álvaro Lapa, que tantas vezes foi visto apenas como pintor. Mas há também a dimensão do Lapa escritor – e essa dimensão está presente na pintura. Poderia dizer o mesmo relativamente ao cinema. Poesia e cinema estão em tudo o que ele fazia. Convidar Eduardo Batarda agora não é diferente disso: é dar continuidade a diálogos que já vêm de trás. Quando no passado convoquei a obra do Manoel de Oliveira não foi por se tratar de um criador consagrado. Ele foi sempre um artista jovem e inovador. Fulgurante até ao fim. Filme após filme, reinventava-se. E é isso que me interessa: artistas cujo trabalho continua a propor caminhos novos, que continuam a surpreender, a expandir possibilidades. Seja o Eduardo Batarda, o Efrain de Almeida, o Nuno Félix da Costa, o Luís Silva Carvalho, o Estevão Mucavele ou o Chissano, todos me devolvem esse fulgor.

É curioso usares a palavra equilíbrio. Interessa-me, acima de tudo, o fulgor das suas obras, e isso não depende da idade nem da fase da carreira. O fulgor é sempre jovem. Quando olho para uma obra do Eduardo Batarda, parece-me sempre nova. Como um poema que se relê e nos surpreende como se fosse a primeira vez. Esse olhar já vem de trás, da minha prática como curador. Quando trabalhei com o Silvestre Pestana percebi que muitos artistas atuais estavam a fazer coisas que ele já fazia há décadas – e ainda assim o seu trabalho permanecia pouco conhecido no meio artístico. A mesma reflexão apliquei ao Álvaro Lapa, que tantas vezes foi visto apenas como pintor. Mas há também a dimensão do Lapa escritor – e essa dimensão está presente na pintura. Poderia dizer o mesmo relativamente ao cinema. Poesia e cinema estão em tudo o que ele fazia. Convidar Eduardo Batarda agora não é diferente disso: é dar continuidade a diálogos que já vêm de trás. Quando no passado convoquei a obra do Manoel de Oliveira não foi por se tratar de um criador consagrado. Ele foi sempre um artista jovem e inovador. Fulgurante até ao fim. Filme após filme, reinventava-se. E é isso que me interessa: artistas cujo trabalho continua a propor caminhos novos, que continuam a surpreender, a expandir possibilidades. Seja o Eduardo Batarda, o Efrain de Almeida, o Nuno Félix da Costa, o Luís Silva Carvalho, o Estevão Mucavele ou o Chissano, todos me devolvem esse fulgor.

 A obra de todos eles continua a transpirar essa jovialidade.

Exatamente. É uma arte sem tempo. Essa mesma energia vejo, por exemplo, na criação moçambicana. E quando digo que muitas vezes olhamos apenas para as imagens do passado, não quer dizer que esse passado não tenha força – mas é importante perceber como as coisas se transformaram ao longo dos últimos 50 anos.

Foi também por isso que existiu um foco em artistas de países que celebram 50 anos de independência. Como é que esta ligação histórica se reflete nas obras que foram apresentadas?

Tendemos a olhar para países como Angola ou Moçambique com imagens do passado. Mas, ao longo destes 50 anos, surgiram muitos artistas que pensam a liberdade e o futuro de forma plena, grande parte deles com reconhecido percurso internacional. Malangatana ou Alberto Chissano são exemplos de criadores que sonharam a liberdade mesmo em tempos de opressão. Hoje, temos artistas nascidos em liberdade que continuam essa trajetória. Atendendo a que este ano se celebra os 50 anos de muitas independências, fazia todo o sentido convocar obras e artistas que participaram nessa procura pela liberdade e que contribuíram para a criação de futuros mais amplos e livres. Fazer justiça relativamente a esses países é pensar e dialogar com os seus criadores e com o seu pensamento.

Sendo que há também uma ligação afetiva a Moçambique.

Sim, Moçambique interessa-me não só pelo que representa culturalmente, mas por ser o país onde nasci. Todos reconhecemos o fulgor da literatura moçambicana, mas conhecemos muito pouco da música ou da arte contemporânea produzida por moçambicanos, em Moçambique ou fora do país. Felizmente, algumas galerias, sobretudo em Lisboa, têm feito um trabalho de excelência ao trazer artistas moçambicanos para o espaço expositivo, permitindo esse contacto mais direto. Hoje, há países africanos que referem até a existência de uma “filosofia moçambicana”. Isso é muito revelador – há um fulgor que parte de um país, mas que também pode ser reconhecido em muitos outros contextos. Conhecer a arte contemporânea desses países é estar em sintonia com os sonhos, as imagens e as ambições que eles têm sobre si próprios. Cada tempo tem os seus gestos, as suas palavras e os seus sons. E a arte é isso – uma forma de estar à altura do presente.

E sentes que isso também é uma forma de esbater a lógica, eurocêntrica, de “arte africana”, como um rótulo fixo e generalizante?

Sem dúvida. Destaco Moçambique neste contexto porque celebramos 50 anos da sua independência, mas o que está ali é uma comemoração comum. Estamos todos lado a lado. E há muito que já devíamos ter desconstruído esse tipo de rótulos e, de facto, prestar atenção aos que os criadores destes países tem vindo a fazer.

Ainda voltando à exposição: muitas outras salas refletiam diferentes formas de pensar e de estar, com obras de artistas como o Tiago Rocha Pitta, a Carla Cruz e Cláudia Lopes, Elisabete Sousa, Diogo Martins e João Melo.

Muitos são artistas jovens que trabalham com vídeo, que já exploraram os desafios da realidade aumentada e da inteligência artificial, convocando o digital, mas ao mesmo tempo valorizam a manualidade – seja na cerâmica, na escultura, na costura, entre outras técnicas. Vejo neles o mesmo fulgor de imaginação que os surrealistas tiveram no passado. Eles convocam o sonho, a imaginação, o desejo, a pulsão, o ânimo ou o desânimo perante a realidade. Mencionaste igualmente a sala onde estão obras de Tiago Rocha Pitta, Joana Patrão, Carla Cruz e Cláudia Lopes e Mariana Vilanova, onde se convoca diretamente a paisagem, os lugares, a nossa presença no mundo e a capacidade de observar. Seja uma folha, um aroma ou a água, é essa atenção que gera poesia e nos faz viver dentro dela. Há uma dimensão poética na forma como olhamos o mundo, talvez mais do que apenas um pensamento racional. Muitos pensadores, especialmente no domínio da psicologia e da neurociência, têm fornecido metáforas poderosas para entender isso. Sabemos que se víssemos a realidade apenas com os olhos, sem ser inundados por desejos, emoções ou criatividade, ela poderia parecer somente crua. O que aqui vemos é exatamente o contrário: tudo se torna mais fulgurante, na forma como olhamos e depois devolvemos essa visão. Por exemplo, ver as folhas, a superfície da terra, o percurso da água, ou a vida que brota das rochas – sabemos que onde há água há vida – como nas obras de Carla Cruz e Cláudia Lopes. Ou ver toda uma vida aquática sob a água, através das algas, fruto da investigação que Mariana Vilanova faz. Ou o Tiago Rocha Pitta que devolve, em vídeo, uma experiência em alto mar, onde vemos um pequeno barco com duas árvores e, ao fundo, no horizonte, a terra e que, de alguma forma, poderíamos ser nós a navegar ou à deriva neste mundo. Isto para sublinhar que a dimensão da natureza e da paisagem estava muito presente. Seja pela presença física da terra, objetos em cerâmica e barro – materiais que vêm da terra – que dialogam com outras realidades técnicas diferentes, mas que nos fazem refletir sobre a nossa relação com o mundo e sobre questões ambientais que são hoje urgentes.

Tendo em conta algumas destas dimensões de pensamento que apontas, pergunto-te qual é o teu pensamento relativamente à função que a bienal pode desempenhar no território onde se insere?

A Maia é um território muito particular. No passado, dizia-se que era um "dormitório" do Porto, mas hoje é uma cidade com uma identidade muito própria. Historicamente, é uma terra rica, que no passado se estendia de Vila do Conde até Campanhã, onde encontramos vestígios da presença humana, desde tempos pré-históricos. Há também, documentada, presença romana. Essas terras sempre foram férteis. Na edição anterior, sublinhei que a Maia foi, em tempos, local de repouso e encontro para artistas e escritores. Era um lugar não apenas de descanso, mas também de estudo, criação, partilha e convívio. Quando a bienal começou, nos anos 90, a Maia era uma cidade jovem, que procurava afirmar-se também pela arte contemporânea, especialmente a criada por artistas jovens. Isso parecia-me justo – correspondia ao apelo do Almada Negreiros em sermos verdadeiramente contemporâneos. Entretanto, a Maia evoluiu muito. Hoje há muitos arquitetos a trabalhar na cidade, e encontramos ali um número notável de obras arquitetónicas – algumas assinadas por Souto de Moura – e de jovens arquitetos a desenvolverem projetos relevantes. Em termos culturais, a cidade tem apostado de forma consistente na arte contemporânea. A Bienal da Maia é, por isso, um desses sinais – mesmo não sendo um centro evidente.

Mas será precisamente por não ser um centro óbvio que a bienal se torna esse lugar especial de encontro e de abertura criativa?

Sim. A Bienal afirma-se tanto através da memória do passado como pela criação no presente – seja por artistas jovens ou por obras que se projetam no futuro. Isso é, em si, uma afirmação. Há também um outro dado relevante: a Maia foi o primeiro município português a implementar a separação do lixo e a alcançar a neutralidade carbónica. É uma cidade com uma consciência ecológica pioneira. Sempre esteve rodeada por zonas verdes e há, de facto, um respeito pela cultura e pela sua importância para o futuro.

Já o mencionaste: pela primeira vez a bienal consolidou a sua programa com um conjunto de residências artísticas que se estenderam por outras localidades do território nacional. Porque é que se optou por esta escolha?

Uma bienal não é apenas uma exposição – isso sempre foi claro. A bienal teve duas exposições principais: uma individual, do Vasco Mota, e a coletiva que ocupou o Fórum da Maia. Por outro lado, as residências artísticas cumprem um dos objetivos da bienal, ou seja, afirmar a importância do momento da criação paralelamente aos momentos expositivos. No passado, os artistas vinham apenas à Maia apresentar o seu trabalho, e nas duas edições anteriores, para criar, e isso mantém-se. Mas este ano quisemos sair também da Maia e ir para outros espaços, criando assim uma extensão da bienal a outras latitudes. Hoje, fazer uma história da arte passa também por falar dos espaços de residência, que podem ser apenas de investigação, mas também de criação e apresentação. A bienal afirmou-se como um lugar de criação, com espaços para isso, e também como espaço de formação, através de projetos de arte e educação, mas queríamos explorar um outro modelo que nos pudesse também abrir caminhos a diferentes sinergias.

Como é que foi feita a escolha desses locais?

Em Portugal há muitas residências possíveis, mas quisemos focar-nos em tipologias diferentes. Por exemplo, a Mescla, no Porto, é um espaço exclusivamente de criação, onde técnicas de impressão se cruzam com a formação: quem cria está também a formar-se nesse processo. Depois tivemos também a galeria Papoila, um espaço híbrido, tanto de exposição, como de formação e debate. A residência não serviu apenas para criar uma obra do Ruben Zacarias para a bienal, mas teve também um carácter curatorial, com uma formação sobre curadoria e princípios de criação de projeto. Primeiro houve uma formação para o público em geral, depois a criação de um projeto curatorial que culminou numa exposição, que não foi só visual, mas incluiu texto, performance e música e gastronomia. Outro exemplo é o CEENTAA, que é um espaço politizado, refletindo o lugar e sua vivência, o que naturalmente influencia a criação. Quem lá esteve sabe que esse diálogo com o espaço não é imediato, mas fecundo. O resultado pode não ser visível amanhã, como quem trabalha a terra sabe. Já o trabalho em São Miguel D’Acha teve outra dimensão, ligada a uma prática antropológica da Madalena Folgado. É uma residência curatorial que ajudou a consolidar um projeto já em desenvolvimento, que se revelou tanto na bienal quanto no próprio local. Houve uma performance musical com adufeiras, uma expressão ritualística e cultural ligada a uma cultura matriarcal. Houve ainda um momento de partilha e confraternização, que foi apresentado em São Miguel D’Acha. Por fim, tivemos também o Córtex Frontal, em Arraiolos, reconhecido como um espaço de residência artística, mas que também é espaço de apresentação e formação, e que reúne todas as dimensões da bienal. Nesse sentido, convidámos dois jovens artistas, o João Marques e a Tatyana Crystina, com a certeza de que essa imersão numa outra cultura e realidade poderia ser muito importante para o desenvolvimento dos seus trabalhos. As residências são, acima de tudo, momentos de contacto e partilha que me parecem fundamentais no percurso artístico independentemente da fase em que se encontra.

Além disso, houve também uma feira de edições de artista.

Sim. Tal como no passado, a feira possibilitou a reunião com espaços que tanto são de exposição e criação, como o Sismógrafo, como de edição de múltiplos artísticos. A Mescla também oferece essa possibilidade, permitindo que as pessoas criem múltiplos. Além disso, participaram livrarias que são também editoras, e que possibilitam aos artistas criarem múltiplos em páginas, como revistas, jornais, pósteres, entre outros. Esse momento possibilitou o contacto com muitos artistas, cada um trazendo realidades e universos diferentes, mostrando diversas formas e espaços de criação.

Outro ponto fundamental para a bienal foi investir na dimensão da Arte-Educação.

Isto é crucial, especialmente considerando o pouco contacto que um público mais vasto tem com a arte contemporânea. O programa de Arte-Educação pode contribuir muito para aproximar as pessoas da arte. Um aspeto importante é que os envolvidos foram também artistas, o que faz com que a abordagem seja diferente e singular. O programa incluiu visitas e oficinas, onde se aprende fazendo, valorizando a manualidade e o fazer com as mãos. Houve também momentos de formação, nomeadamente com o Hugo Cruz e o seu trabalho em torno das lógicas comunitárias. Além disso, convidámos o Vasco Mota, artista ligado ao desenho, para dar um workshop de urban sketching. No programa havia também o Meet Up, onde um grupo de pessoas se propôs a fotografar a bienal, o que permitia captar diferentes olhares sobre a exposição e a forma como o público se relacionava com as obras. Também houve momentos de conversa e partilha, como os encontros organizados pelo Atelier 3|3, onde artistas, curadores e público se juntaram para discutir e partilhar experiências. Tudo isto promoveu um contacto direto com a exposição e com os artistas, enriquecendo o diálogo.

Fazer uma bienal hoje, especialmente deste género, implica ter um programa multiforme e multifacetado, marcada sempre por esse espírito de partilha?

Sem dúvida. Estou convicto dessa condição. Porque significa escutar a realidade complexa dos artistas, que atuam em diversas áreas, e reconhecer que a criação artística não se limita ao espaço do atelier, mas pode acontecer em vários espaços e contextos. E que pode acontecer em locais descentralizados, fora do circuito legitimado.

O que representa a Bienal de Arte Contemporânea da Maia?

As bienais podem significar muitas coisas. Num primeiro momento, são encontros de criações num espaço e tempo definidos, podendo ser temáticas, definidas por faixa etária ou por áreas artísticas. A Bienal de Arte Contemporânea da Maia, como outras, deve dar conta não só do presente, mas também de como podemos olhar para o futuro, refletir e agir. Que imagens, gestos, palavras e experiências elas nos oferecem para pensar e operar melhor no mundo? É importante que uma bienal esteja alinhada com a realidade artística contemporânea. Às vezes, vemos eventos que parecem presos no passado, como se as mudanças das últimas décadas não tivessem ocorrido, mantendo práticas e pensamentos antigos. Por isso, é fundamental captar o que está a acontecer atualmente e valorizar o fulgor da arte. É essa força que nos move, que nos torna intervenientes ativos. Hoje, sabemos que ser ativo na experiência artística, em vez de passivo, nos faz ganhar mais, estar mais presentes, mais conectados. A experiência da Bienal de Arte Contemporânea da Maia é ver com o corpo todo – é sentir, participar e não observar apenas à distância.