Uma Bienal que é uma exposição, mas nunca é apenas isso. Arte e comunidade, local onde se reúnem trabalhos artísticos, pela mão e pensamento do curador Manuel Santos Maia, de forma a refletir o tempo que se vive, aqui e agora.
Esta Bienal falou de um coletivo, de um todo que nos encontra na busca incessante de uma forma ideal de estar, fulgor, luz/clarão vinda de uma qualquer origem, ou de todas as origens. As ideias como coisas que nos perseguem e não conseguimos largar. A nossa atualidade, a nossa individualidade, mas também os sonhos e conquistas dos que vieram antes de nós, a relação com a diáspora, os dialetos, as mezinhas e receitas das avós das aldeias e da mãe preta, as sociedades matriarcais que foram substituídas por mães de alto rendimento onde o trabalho se sobrepõe ao cuidar, e onde a doença grave parece ocupar o lugar dos medos silenciosos de todos. Onde a energia masculina não sabe mais qual o seu lugar e não encontra outra solução além do ginásio de alto rendimento. Onde a velocidade contemporânea sugere um saudosismo desse tempo que passou, apesar de todos os problemas que esse tempo também tinha.
A exposição principal da Bienal da Maia resgatou uma forma de saber fazer que parecia perdida, mas trouxe consigo um fulgor contemporâneo de jovens artistas que já viveram estas contradições e sabem bem o que querem agora.
O ponto alto de algo, o auge, é quando conquistamos aquilo em que investimos tempo, e em que o tempo é a nossa melhor moeda de troca. Neste tempo que vivemos, cheio de contradições, onde individualmente sentimos que estamos a travar uma luta desigual, numa espécie de corrida contra o tempo, dificilmente chegamos ao auge, ou não conseguimos identificar o que se possa parecer com isso.
Se estamos cada vez mais cansados pelo estilo de vida que a cidade luminosa e intensa nos trouxe, e pela quantidade de atividades que temos/procuramos, por outro lado, encontramos fontes de energia na reconquista das manualidades que os nossos antepassados deixaram cair. Procuramos o slow living, o slow parenting e até o slow cooking, fazemos retiros para reaprender a respirar, reencontramos formas naturais de semear, plantar e colher, e cozinhamos em coletivo, em torno de uma mesa grande, de onde tínhamos saído, gradualmente com o aumento dos serviços de streaming, e o fenómeno da fast food, tão popular entre nós.
Os workshops, residências, formações e encontros que se integram na BACM resultaram de uma confluência de energias fulgurantes. Mas também do calor humano vindo de São Miguel de Acha, da Escola da Macieira, ou de Arraiolos, locais outrora abandonados que ganham corpo e vida através dos artistas que fugiram da grande cidade para reencontrarem o que perderam, apesar de não saberem bem o que perderam.
O fulgor que se anuncia tema aparece e desaparece, numa ideia fugaz. Será que estas ações irão resgatar a valorização dos saberes tradicionais? Será que se consegue criar pontes entre o passado e o presente, trazer para a atualidade as sabedorias essenciais, aquelas de que necessitamos para nos reencontrarmos com o nosso eu perdido e cansado da linguagem excessivamente contemporânea?
Não sabendo responder a estas questões, avançamos ideias que sabemos serem conquistas da BACM em 2025.Nesta bienal os artistas fizeram as telas com as suas próprias mãos, aproveitando pedaços de madeira antiga (Manoel Quitério), bordaram nas telas (Ruben Fernandes), escavaram as telas com goivas e ferramentas de esculpir madeira (Jiôn Kiim) ou utilizaram tintas reaproveitadas (Rui Castanho), cuja reação química acorda o lado experimental e o brilho no olhar do observador.
Nesta bienal, os artistas recuperaram técnicas tradicionais de tingimento de tecidos - que, hoje nenhum de nós sabe fazer - mas que antecedem toda a indústria da moda, e a aplicação de stencil para criação de padrões (Ana Manso), enquanto outros recolheram tecidos que são eles mesmos uma história do vestuário no mundo (André Romão).
Uso de materiais naturais ou técnicas ancestrais, como cerâmica, tecelagem, bordado, entalhe, aplicadas nas obras contemporâneas, criou um diálogo entre as matérias e os conteúdos que são de alguma forma universalistas.
Nesta bienal, os artistas conversaram com o seu eu espiritual, procurando ascender a conhecimentos ancestrais que vivem em nós através do nosso sangue e suor, e através das constelações familiares, de histórias de traumas que aconteceram antes de nós e só o nosso corpo consegue lembrar, mas não dar nome nem forma. Conseguiram ainda representar, pela pintura, rituais de passagem que os jovens adultos passam, mas acerca dos quais não podem falar (Ruben Zacarias). Nesta bienal, os artistas recolheram-se na natureza, colheram os seus despojos, mas não interferiram nela (Joana Patrão). Nesta bienal, os artistas trouxeram objetos de memória, tão grandes que nos podíamos esconder neles (Renato Ferrão), enquanto espreitávamos os lugares estranhos desses objetos que nos eram barrados em crianças.
Espiritualidade e conexão com o sagrado e vínculos com a natureza, que na arte contemporânea podiam ser apresentadas como uma crítica ao racionalismo dominante e ao distanciamento do humano em relação à terra. Esta bienal buscou, através destas práticas manuais abandonar a ideia (ainda tão popular) do artista de elite, ao mesmo tempo que se aproximou do esplendor, luz de um corpo qualquer, brilho transmitido por esse corpo (ou obra).
Inauguração ou o primeiro grande momento de partilha — 3 julho de 2025
As residências artísticas surgiram como um complemento do que é/pode ser uma exposição, que habitualmente consiste num momento de mostra, após a finalização de um conjunto de obras de arte. Nas residências artísticas, por outro lado, o enfoque esteve na criação, no pensamento e no processo, algo que nas exposições já nos aparece como algo finalizado, de alguma forma fechado. Na BACM, a edição de 2025 inaugurou a exposição em conjunto com a mostra de resultados de algumas residências promovidas antes/durante a preparação da exposição.
Ainda antes da inauguração da BACM, e no contexto do projeto de Arte-Educação, realizou-se a oficina do artista investigador Hugo Cruz, partindo de uma publicação em forma de manual com o título “Criar Coragem”[1], apoiada pelo plano nacional das artes, em torno da arte/comunidade, pensada para artistas, professores, curadores, educadores, e no fundo qualquer pessoa que trabalhe ou queira estar envolvido no entorno da arte e comunidade. Aqui, Hugo Cruz propôs a ideia de fazer juntos, a ideia de pensar fazendo, através de exercícios práticos que pudessem ser ativados em contextos comunitários. São práticas participativas que servem de ponto de partida para esta oficina, mas se relacionam também com a BACM: como participar de algo de forma construtiva, como criar ações, como ativar o pensamento crítico a partir de algo, como fazer coisas em conjunto.
No contexto de workshops/residências, a Bienal enquanto lugar de partilha e reunião, propôs com o atelier 3|3 de Cristina Alves, um conjunto de ações que tiveram início antes da inauguração da exposição, culminando no seu encerramento.
No primeiro momento, o atelier 3|3 na Bienal convidou os alunos da Escola Árvore a visitar o Fórum da Maia, onde realizaram uma atividade de desenho, e de onde um dos desenhos veio a servir de matriz para o tricot. Na segunda fase, realizou-se uma open call para ativar todas as pessoas que soubessem fazer tricot, e até mesmo outras que quisessem aprender, para vários encontros onde tricotaram uma partilha de matérias. Ao longo da Bienal, o primeiro momento público coincidiu com a inauguração, retomou a 19 de julho e concluiu-se a 6 de setembro no encerramento, mostrando ainda um resultado dos registos vídeo que foram sendo realizados.
Manoel Quitério e Michel Bragança estiveram em residência no Fórum da Maia, enquanto dedicaram o seu tempo a pintar outdoor de grandes dimensões, colocados nas entradas do Fórum da Maia. Reconhecido pelo seu trabalho no exterior, em grandes dimensões, Manoel Quitério leva sempre uma dimensão social para os seus projetos, onde conhece as comunidades e com elas decide de que forma intervir no espaço público. Estas pinturas de grandes dimensões ativaram a relação entre o público e o espaço envolvente à exposição; onde habitualmente são colocados outdoors informativos, estiveram expostas pinturas onde a manualidade e o gesto reforçados pelos temas inusitados das pinturas e paleta cromática convida.
O projeto da Madalena Folgado, com Laura Garcia e Rafael dos Santos, em São Miguel D’Acha, consistiu numa residência curatorial na ADEPAC no sentido de apoiar um projeto que se dedica a recuperar as práticas ancestrais, através de uma leitura contemporânea. Houve um reencenar de uma romaria nas datas próximas à Páscoa, onde a mulher/matriarca teve um papel principal. Na inauguração da Bienal foi apresentado este percurso simbólico, no espaço da exposição, até ao exterior, terminando numa mostra gastronómica, e um momento de degustação coletiva.
Estes momentos de partilha e degustação coletiva recuperam as festas das coletividades locais, do interior do país, assim como as músicas tocadas pelas adufeiras, particularmente trabalhadas por autores como Michel Giacometti e Fernando Lopes Graça. Esta foi uma residência de investigação, criação, e com uma componente antropológica pela aproximação social, consciência sonora, e ainda uma visão política e crítica do estado das coisas.
Outro projeto que esteve relacionado com as residências artísticas da BACM foi a Galeria Papoila, no Porto. Um lugar expositivo, mas também de partilha, convívio, atelier de artistas, e onde acontecem regularmente ações de arte-terapia, lançamento de livros, exposições de artistas moçambicanos ou de diáspora. Dirigida em conjunto por Marisa Pedrosa e Ruben Zacarias, teve uma extensão na Bienal da Maia, através de duas residências com características diferentes.
Uma das residências foi de teor curatorial, com Manuel Santos Maia e Ruben Zacarias, cujo objetivo foi pensar juntos o fulgor da arte moçambicana, resultando numa exposição comemorativa dos 50 anos de Moçambique. A segunda residência aconteceu através da criação de uma ponte entre os dois espaços, no sentido em que a tela /lona “Sem Título” de Ruben Zacarias, de grandes dimensões exposta no exterior do Fórum da Maia, teve o seu início no espaço da galeria e foi concluída na Maia.
Os objetivos da galeria Papoila são tangentes com os da Bienal, e nesse sentido esse espaço ativa-se como espaço de residência particular.
49 º Meet up fotográfico, iniciativa do Espaço Mira no Porto, um encontro de fotógrafos que se juntam regularmente em diferentes zonas do país, aconteceu no dia da inauguração da exposição da BACM. Foram fotografando, captando diferentes olhares e tecnologias (analógicas, digitais, a cores ou a P/B), que se multiplicaram devido à diversidade de fotógrafos que fazem parte deste coletivo. Desta forma, o encontro fotográfico trouxe mais cor e diversidade ao contexto de inauguração, e trouxe ainda olhares diferentes/outros, para quem não foi à inauguração e só teve acesso a ela através dos registos fotográficos.
Aconteceu ainda na inauguração da Bienal da Maia, a Feira de Edições de Artista. Foi um momento que proporcionou uma aproximação extraordinária entre os artistas e os públicos, pela mostra e venda de peças produzidas em contexto de múltiplos pelos artistas - dessa forma vendidas a preços mais acessíveis - quer sejam publicações, livros de artista, fanzines, postais, cartazes, folhetos, serigrafias, gravuras, camisolas, totebags, entre outros. A prática de edição de autor tem acompanhado os artistas contemporâneos, como um espaço que permite a experimentação livre, através da linguagem gráfica, e da palavra escrita, ao mesmo tempo que ativa um maior envolvimento social e político, ligado ao estado do mundo.
Estiveram presentes a Oficina Mescla, Atelier 3|3, Oficina Arara, Sismógrafo, Gabinete Paratextual, Zbiri, Edições da Ruína, Livraria Térmita, Livraria STET, Jornal S/Título, Vasja Lebaric e Nicola Bracci.
Segundo momento de partilha de performances, resultado de residências e ativação de obras — 19 julho de 2025
No Fórum da Maia, esteve em residência o artista Vasco Mota, cujo processo de trabalho aconteceu no acompanhamento da montagem da exposição. Nesse contexto, o artista cuja prática está relacionada com o desenho rápido de observação de ações do dia-a-dia, acontece em espaço público, e à vista de todos, contribuindo de certa forma para uma aproximação entre artista e público, assim como o workshop orientado pelo mesmo no momento de inauguração da Bienal, cujos participantes podiam inscrever-se de forma livre. A residência de Vasco Mota culminou na exposição de Mupis no espaço exterior. “Os olhos por instantes são sonhos”, que inaugurou no dia 19 de julho, num momento de ativação da Bienal integrado na programação.
Ana Rita Teodoro esteve em residência no CEENTAA, associação cultural e ambiental, uma residência muito particular, com uma componente cultural e ambiental, por onde têm passado diversos artistas. Esta residência tocou o contacto com a natureza, em Castelo Branco, numa ótica que ativa cenários que podem surgir muito depois de a residência terminar.
Alice Guerreiro criou uma performance com dois atores, Rita Paixão e Pedro Oliveira, durante o período de montagem da exposição da Bienal, partindo dos versos de Nuno Félix da Costa e Andreia C. Faria e também da Maria Brás Ferreira, que de alguma forma tinham escrito textos para o contexto conceptual da BACM. Na Bienal criou um conjunto de situações performativas em que os textos ganharam novas leituras, na sua apresentação duracional, que aconteceu a 16 de julho.
Rita Senra esteve em residência na Oficina Mescla. O trabalho de Rita Senra acontece num encontro entre o tempo que existe, e a busca de contextos não urgentes, resgatando arquivos de lojas que encerram, colecionando materiais que são considerados despojos e aos quais confere camadas de superpoderes. Com esta residência, a artista pôde explorar outras materialidades e fazer uso do espaço oficinal, para a área de serigrafia e gravura, numa busca pelo múltiplo.
Carla Cruz e Cláudia Lopes estiveram em residência na escola da Macieira, em São Pedro do Sul, onde deram continuidade a um projeto comum onde ambas refletem em torno da ideia de marca, fragmento, natural e construído, explorando o que é deixado pela natureza e o que resulta da criação/destruição humana. Enquanto o carácter teórico destes projetos pode ser profundo e assente em diversas referências, Cruz e Lopes optam por se ausentar destas referências e passar tempo no lugar, que lhes irá trazer a relação de que necessitam. Lugar de efemeridade, a performance ativa algo que encerra cada momento investigativo. O último aconteceu a 19 de julho 2025, na Bienal da Maia.
Subuia é uma criadora de Moçambique que produz momentos de partilha através da gastronomia, tornando presentes sabores exóticos, através do fulgor destes países que têm apenas 50 anos de independência e de identidade própria, mas centenas de anos de sabedoria ancestral. Saborear esta gastronomia é reconquistar memórias muito distantes das nossas e dos nossos antepassados, amigos, conhecidos. A apresentação performativa das criações de Subuia aconteceu no dia 19 de julho, na Bienal da Maia, e as receitas da comida partilhada foram colocadas na parede, para que pudessem ser espalhadas entre todos os participantes.
Uma espécie de encerramento da Bienal da Maia — 6 setembro de 2025
A Bienal da Maia encontra as suas datas finais com a apresentação do catálogo, algumas performances e ativação de obras de arte, assim como o apontamento do tema para a Bienal seguinte. Em tempos de incerteza como os que vivemos hoje, o fulgor da criação contemporânea oferece-nos um espaço de contemplação, reflexão e encontro com as nossas próprias raízes.
A Bienal da Maia encontra as suas datas finais com a apresentação do catálogo, algumas performances e ativação de obras de arte, assim como o apontamento do tema para a Bienal seguinte. Em tempos de incerteza como os que vivemos hoje, o fulgor da criação contemporânea oferece-nos um espaço de contemplação, reflexão e encontro com as nossas próprias raízes.
Arte-Educação com Oficina Sibila
Finalmente, a BACM propôs ainda uma programação transversal de arte-educação, pensando que esta deveria dirigir-se a todos os públicos, mesmo para aqueles que não sabemos como nomear. Para isso, foi convidada a Oficina Sibila, um atelier de artes plásticas na Maia, cuja sede de trabalho fica na mesma praça onde se situa o Fórum da Maia e, nesse sentido, o território local e o sentido de pertença ganharam ainda mais importância na criação das propostas realizadas.
Como enfoque principal desta programação, foram concebidas três ações plásticas, práticas, com componente teórica de introdução, passando pela exposição, sempre como forma de ativar as obras de arte que lhes servem de referência.
Foram elas: a) “Pintura em Massa”, uma ação de pintura em grande escala, com a componente de coletivo/individual, a noção do eu, as diferentes materialidades da pintura, e o desafio lançado pelo acaso de frases escritas por crianças e adultos a partir da experiência vivida; b) “Somos todos em tons de azul”, cuja principal referência foi a obra de Filipa Frois de Almeida, e onde a ideia de retrato da exposição foi colocada em causa através da materialidade da cianotipia, resgatando as condições climatéricas como componente da obra criada; c) “Objetos de memória in-útil” evocou a tridimensionalidade da exposição, através de pastas de modelação de diferentes materiais, remetendo para a forma como a nossa memória funciona e como cada um de nós recorda coisas tão diferentes do outro.
Destas três ações, derivaram as suas versões adaptadas aos professores, educadores, animadores e outros agentes ativos, que de alguma forma estão relacionados com o ato de criação na Maia, Porto e toda a sua envolvente. Nestas datas dedicadas aos públicos educadores, além de visitar e experimentar materiais, o objetivo foi dar aos professores a possibilidade de colocar questões, fazendo parte do processo criativo, aproximando-os do pensamento dos artistas, facilitando a extensão da escola como lugar de aprendizagem coletiva, e alimentando o sentimento de pertença dos professores nestes espaços culturais que são de todos nós.
De uma forma aberta, e mostrando a maior disponibilidade, esta programação teve as suas extensões com as famílias, em que pudemos observar as diferentes gerações a explorar em conjunto os conteúdos e materialidades da exposição, recebemos visitas de grupos que se organizaram de forma espontânea, grupos de amigos que se reúnem de forma regular, grupos de teatro, centros de dia, grupos de pessoas com necessidades específicas, entre outros. A Bienal da Maia procurou, encontrou e acolheu todos os que se sentiram convidados pelo seu fulgor extraordinário, e deu resposta a de que forma continuar o humano? Imaginamos que deve ser mesmo assim.