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O Fulgor. Curador dos Tempos

Sheila Khan

A História Desirmanada | Nunca fomos iguais. A humanidade e a sua experiência que implica tantas dimensões traduz sempre esse sintoma aflitivo e teimoso de disparidade, desigualdade e, sobretudo, de iniquidade. Somos e permanecemos diversos e diferentes. Nem sempre fomos argutos em compreender e retirar desta gramática colorida lições, onde nobreza e dignidade partilhada poderiam servir como guias para uma maturidade maior de todos os homens, mulheres e crianças. Ontem como hoje, vivemos empurrados por uma enxurrada de pedras arremessadas contra os valores de liberdade, fraternidade e de igualdade. Da varanda do tempo tão enaltecida e namorada por estudiosos - sejam eles filósofos, historiadores, sociólogos, antropólogos, escritores e tantos outros curiosos da arte de pensar os humanos - vamos testemunhando que os processos históricos foram repetitivamente abissais, abruptos e cortantes: olhamos para o dicionário inscrito nos nossos corpos, nos trajetos culturais e travessias identitárias e percebemos o mapa que por onde circulam os grandes ciclos são feitos de fissuras, rachas, divisões e muros altos. Muros que nos separam e que nos hierarquizam entre superiores e inferiores, hegemónicos e subalternos, colonizadores e colonizados, dominadores e escravizados, visíveis e invisíveis, autóctones e ‘Outros’ cinicamente transformados em estranhos: migrantes ilegais, refugiados e exilados.

A história da humanidade e dos seus povos aprendida e socializada sempre falou de convulsões por onde sangue, sal e sacrifício foram matéria para o património que trazemos nas nossas almas e para as lutas por um saber melhor, por um respeito pelas nossas visões do mundo, pela hospitalidade serena às mágoas e traumas inscritos nas nossas mentes, hábitos, costumes e interioridades. O fosso entre populações, comunidades, grupos locais e nacionais é monstruoso, porque a história que desirmana os seus sujeitos é, insistentemente, uma história hesitante. Este caroço duro de roer ao qual estamos acostumados a designar de hesitação não é nada mais do que a realidade obstinada em colocar alguns num pedestal e numa morada imune a qualquer perigo, suspeita e medo; enquanto estimula e amplifica as sombras desta inclinação historicamente cambaleante, provocando uma profusão de experiências marcadas por escassez, pobreza, solidão e vazio.

Escrevo num tempo necessário e urgente de perguntas. As respostas que tantos de nós pensámos que estariam já limpas de qualquer confusão, má-interpretação e protegidas de crenças de que tudo o que foi sendo conquistado se encontrava fora de perigo, são limitadas por uma tendência distópica e divergente quando comparada com um tempo de esperança, euforia, gratidão e de vitórias. Outrora, e numa janela temporal e vizinha, quantos de nós abraçamos com euforia, esperança e celebração os gestos que resultaram nos termos inscritos nas nossas constituições, nomes que almejamos como eternos e corajosos perante obstáculos e desafios. Independências e Liberdades espelham os nossos mais nobres desejos de uma sabedoria histórica sem precedentes. Não havia uma única interrogação sobre os caminhos tomados, com os braços heroicamente levantados por um luminoso amanhã. O dever de memória que milhares de sobreviventes juraram perante o fim do genocídio, das guerras fratricidas entre povos, foi sendo gradualmente esquecido e absorvido por uma ordem mundial que dita regras que corrompem os nossos espíritos.

Neste olhar que mapeia as nossas realidades atuais, pergunto: podemos nós, como herdeiros desta longa historicidade, ser agentes de mudança? E, com rigor, pode a arte ser um sujeito de hospitalidade ao novo? Este é o exercício que nos coloca o compromisso de interpretar sem medo e silêncio os sentidos da nobreza do Fulgor. Mais do que um jogo de palavras sem bússolas, a responsabilidade de uma cidadania artística diz-nos que o pensamento interdisciplinar, diverso e amplo nos ensina a escrutinar e a mergulhar em águas tumultuosas e pardacentas, refinando o olhar, o gesto, a escuta no sentido de desmascarar, por um lado, as pesadas linguagens do passado e, por outro, as impurezas do presente. O conhecimento responsável da arte e dos artistas na sua maior diferença e inteireza ensina a elevar a energia do novo, recuperando aprendizagens acumuladas sob a curadoria da coragem, da audácia e da empatia humanamente coloridas, albergando passado e presente numa partitura de vozes, texturas e paladares que brilham à luz de uma poética da empatia, da fraternidade e do fulgor como curador dos tempos.

A arte não é somente uma estética que resulta de uma energia eclética e subjetiva, ela traz consigo a dádiva da ubiquidade, de uma presença atenta e vigilante da experiência humana. Quiçá, a melhor metáfora é encarar a arte imbuída de uma personalidade que examina, recolhe elementos e trabalha com os seus vários métodos de análise os comportamentos, as emoções, os protocolos feitos de silêncios, sussurros que na arena pública são expelidos e marginalizados por serem demasiado desobedientes e discordantes. Nada melhor do que abraçarmos esta clarividência que rejeita o poder, o desalento, a desilusão, e juntos deitarmos abaixo os elos que enfraquecem, desestruturam e rejeitam essa belíssima fórmula de sermos fulgurantemente humanos seja no que de mais árduo existe em nós e no que faz de nós um todo por quem apetece, relembrando o poema de Alexandre O’Neill, tropeçarde ternura”.