Escrito no ano em que o presidente dos EUA
propõe proibir, entre outras, a palavra Mulher
1.
Em cena, duas mulheres. Cabeça para fora, corpo submerso. 1 ... 2 ... 3 ... respire, guarde, aguarde. Outra vez, 1 ... 2 ... 3 ... quando sentir a contracção, faça força, até ao fundo. 1 ... 2 ... 3 ... tenha calma. Respire, guarde o ar, no fundo, aguarde. (Que idade terá?) Não pode ir ao fundo-fundo ou perde-se o fio, ou perde o fio à meada. E o que dirão? O que vão dizer. Lembre-se: neste local está a ser filmada. Não faça esse ar de desleixo, vá lá. Mas também não se ponha com cuidados excessivos, não há maior inimigo da libido que cuidar em demasia. É encontrar o equilíbrio, não é? Como tudo na vida. (Esta não tem mais que 15 anos.)
No quarto ao lado, um homem agoniza. Quatro mulheres à sua volta pedem à Nossa Senhora que o leve. Ninguém faz a contagem além das máquinas. As mulheres sabem que nada se ensina ou conta: ajuda-se a chegar e a partir.
Dá-se colo.
Dão-se as pernas por escorrega.
Não necessariamente por esta ordem.
Em cena. Elas estão sempre em cena. E ao mínimo sinal de aplausos levam as mãos ao rosto escondem o sono. O bocejo é uma festa na boca de uma mulher.
Não importam as roupas. De novo o ensaio e a vida adiantando-se-lhe. Duas bocas – correm. Quatro olhos para quatro peitos – correm. Dois sexos, demasiadas línguas – correm. Um pó de bruxas é o halo luminoso que merecem, e um fraco por policiais. Estas mulheres apaixonam-se por detectives disfarçados de príncipes. Não vão conversar. Nós, a seu respeito, estaremos errados. Não vão conversar estas mulheres. As mulheres não conversam nunca entre si. É para fora, camisola do avesso corrigida.
Não estamos para contradições. Eis a origem da barbárie. A barbárie, isso de só conseguirmos vê-la como coisa retornada. O bárbaro – forasteiro que há muito conhece o caminho até casa. Não será hora de prostrá-lo num par de molduras para lhe cunhar o alvo, recitar-lhe a mira?
Elas estão, por nós, arredadas do próprio fim, uma da outra. Elas escorrem sangue e consideram-nas um luxo, por isso. Elas dão cama surda à vida, almofadas anos e anos demolhadas em sabão. Elas vivem dentro de aquários e ensinam os filhos a falar uma língua-mais-tarde-espora-nos-seus-quadris. Elas falam para dentro, elas pensam em voz alta.
A resistência é menina e brinca às escondidas, até que um dia uma mulher, filha e mãe – ou não, ou sim, porque é sempre um pouco assim – um dia uma mulher, filha e mãe, morre e a resistência sai à rua e vai pregar crisântemos na testa do povo. Neles escreve: “Quem és tu?”. O silêncio já vem envenenando e aqui não se fazem trocas, só se agendam vinganças. Os pedidos de perdão são prontos, e as mãos caídas, fechadas. Quem és tu?
Elas apercebem-se que o luxo não pede, só acolhe. E a menstruação escorre. E o sexo sobe à testa.
Bem me quer, mala perdida, bala encontrada. Elas falam de amores e desamores e costuram o silêncio que aos outros mais convém. A sua maldade é uma forma de justiça poética. Sofrem a ironia disso. A sua bondade um farol antigo, só falho se falho o mar de homens no mar.
2.
Numa mensagem de texto, alguém querido dizia que (eu) teria uma casa, um tecto. Teria (eu) prazer e alegria. Que isso me era devido – suspeito – tanto quanto entre mim e o universo nada é exactamente devido.
Indo para recolher uns versos que deixei por aí, na tímida incineradora que são os cadernos de notas, deparo-me com essa mensagem gravada. Habituei-me a registar mensagens de amantes como listas de bens de primeira necessidade de que não me posso esquecer de comprar mais tarde.
Mas e no fim?, quando à saca assomam mais que gatos, quando as vitrines vigilantes assinam a esperança de um mês plantado no mesmo lugar, de quem é o feito? A quem caberá, mais tarde, desfazê-lo?
Assobia o amolador. O amolador que não sabe da minha gatinha Zana que cheira a pó, que dá esse quase nada da eternidade de um salto. A minha gata Zana que me dotou de capacidades maliciosas de tamanhos outros e camuflagem. Sempre as costas voltadas, quando passa o assobio do amolador, antes de passar o amolador. À margem do romance, zás, rebenta a beleza. Mais uma ofensa sem objecto. E os rostos mais e mais nítidos, como uma vingança entoada num timbre gasto, de rádio velho. Uma vingança demasiado repassada pelo tempo para dela esperarmos outra vida. Vou-me acostumando a essa forma de liberdade, as repetitivas salvas, o pouco tino. A esse berço vazio, a uma certa talha dourada sem rebordo de pragas, só pregas: vou-me acostumando e agradeço, tudo muito certo, obrigada por terem vindo.
Logo a seguir à mensagem sobre o meu tecto, alegria rápido lembrada, ponta da língua rápido esquecida (Mucosa roxa, peito cor de rola, Seu beijo, seu texto, seu cheiro), não sei se minha a alegria e o prazer, logo a seguir à mensagem, outro apontamento: “porta da cozinha não fecha bem”.
Pouco prováveis as metáforas se os espelhos ultimamente revelam um único rosto. Por outro lado, é próximo o universo, o todo do todo do todo por nada, se num canto mínimo o próprio corpo enroscado, uma mesma saudade em diagonal.
3.
(Uma mulher sai para o trabalho. A casa vigia. É o chão que ela encerou um par de horas antes que dá vão aos arroxeados que mais tarde lhe coroam os ombros. A pancada e o povo a adivinhar-lhe o desenho de cardumes nas feridas abertas.)
Eu vejo-as e com elas a minha sorte ingrata. Dizer,
é a forma mais curta de chegar ao teu coração:
atalhar caminho sobre mim, desaparecer devagar.
4.
A nossa coragem alinhada com os começos.
A nossa cobardia, com os fins.
Nossa coragem uma dissemelhança.
Nossa cobardia um ditado.
Nossa coragem uma frase copiada.
Nossa cobardia dizer “acredito”
e pensar se sim se sopas.
Nossa coragem dizer “acredito”
e não pensar nada.
Nossa cobardia um arrepio ao arrepio.
Nossa coragem estar ao arrepio do arrepio ao arrepio.
5.
Bem entendo quem encontre nas descrições
a forma fácil de caçar o real,
e este?,
patrono que finge deixar-se acolher.
Mas vejam bem,
isto de afixar, listar, dizer, dizer outra vez
para dizer melhor,
é andar às cegas,
é propormo-nos
orientar os amigos.
Dizer-lhes: Veem esta cor?
Procurem agora a sua versão a preto e branco.
6.
Há nomes que deviam sempre ser escritos em itálico, como os lugares a que fomos e de que nunca saímos. Os lugares para cujas entranhas empurramos o para-sempre de cada dia mais singelo que outro que sempre o sucede. Um dia sucede sempre o outro e a porra das retrospectivas, – uma canseira –, modos de andar de soslaio e não à revelia. Somos acumuladores em águas-furtadas.
Amiúde confundimos céu e telheiro, frete e habitat, mancha-mãe e o sexo mais forte e a febre do sexo e a manha firme da infância. O sexo mais forte que o petróleo virulento das apostas a sementes de feijão, as apostas, quando as meninas já não querem brincar mas ganhar uns patacos que lhes torne mais leve a noite, o peso do próprio corpo: E para quê tudo isto? Para que foi tudo isso?
Quando foi que a noite passou a ter o peso do próprio corpo?
Quando foi que o peso passou a ter o recorte de uma coordenada?
Olhos de Cê,
soa-me sempre aveludada e mansa
a voz das grandes indignações.
Com elas vou-me deitar. E penso em ti.
7.
Agora, diz-me. Tu que acreditas na tua hora. Numa hora que seja de cada um e reconhecível por todos. Diz-me agora: para que lado se deitam os ponteiros do relógio? Têm uma cabeça em forma de bouquet e no lugar dos pés um império arruinado, e depois não prestam nem mesmo para serventia de corredor. E quereres tu que eu tenha uma hora e tu a tua. Assim, desirmanadamente. Assim, na respiração recta dos relógios. Quando os meus mano-a-mano são a grande birra
que a criança-de-mim-mesma persiste em fazer a favor do adulto-de-ti-mesmo-que-amo-eu-mesma.
Mesmo assim? Poderiam dizer-me agora. Podiam ao menos alinhar-se aos atrasos do sol, afilar as unhas geladas nesta masmorra em forma de conclave e Deus à porta a tomar-lhe o gosto por truques. A insídia protege, o pecado é a distracção como vício, as pálpebras cerradas como solução. A insídia diz não – modo de dizer sim a todo o custo, a troco de nada. O corta-mato tornou-se uma correria de atalhos e, convenhamos, o peito já vai pedindo escassez pronta para danças e malabarismo. Queria eu uma geografia e um remédio que me salvassem desta morrinha do antes e do depois. Não, isto não está certo e nós estamos zangados. Preferiam-nos cagados de medo, não era? E vêm as desculpas e as análises políticas (dizem eles, sabem lá, souberam lá). Uma onda que vem no mar não é boa nem má. É só preciso fazer-lhe frente ou deixarmo-nos flutuar, de qualquer das formas, acreditando na morte que vem e no amor que some como numa e a mesma coisa. A calma disso.
Estamos zangados. Ela diz-me: eu tenho medo, Maria. E se os meus são assim? Devo odiá-los?
Eu pergunto: o ódio não é uma roleta-russa? Não, o ódio é o esquadro onde bate o compasso da fúria que é o amor que esmiuça a estrada feita, de olhos postos nas veredas gramadas ali mais adiante.
Ela diz-me: sugeres que encoste um revólver à têmpora? Ou que me estenda em pleno trilho? Maria, tu enlouqueceste. Digo-lhe: Digo-te que te habitues ao frio e ao quente das grandes indecisões e ao que pode um colo. Afinal de contas, a ética é isso mesmo: saber aninhar-se numa grande indecisão. Sobretudo, amiga boa, que saibas saber que a tua fronte faz uma sombra bem maior do que a dor que te espicaça: a dor, ess’outra jorna – a certa.
Le parole sono importanti!
A insídia, se é insídia, e não simplesmente insidiosa, vê e junta grãos e beija tubérculos e raspa enfileiradas juntas de bois, – outro sol, o mesmo dia –, bois madrugadores como pares de joelhos quedos, por isso merecedores de ternura, o quanto baste. E estuga o passo e acelera o passo e a dona cai de costas. A insídia de atracar membros arredados para fora da cidade, a malícia de estreitar pela desgraça sem que nela se tropece, só nela atentando. A primeira lei é a do anonimato, ou não se fez a constituição em verso. A lei protege, tem vezes que sim, a insídia protege, tem vezes que sim, também.
Embora com isso! – deixemos esta canseira
de agora ser sempre um pedido arremessado
contra o beco menos curto
do bairro mais familiar da cidade.
8.
Eis-nos atónitos, vagamente absortos. Isto é fechar os olhos, engolir e passar ao próximo. Isto é pagar promessas. Eu, pelo sim pelo não, vou pelo namoradeiro da cidade: Antoninho-manjerico, primo-malandro, comparsa de punho na ilharga, quase chama.
Olhos de Cê, bicho, caju parapresente,
não era já de mudar as águas ao rio?
Ele que insiste no canto da cidade
que nunca escurece?
Isto é,
isto é irmo-nos descobrindo pouco a pouco, manamente a pista na pista. E as prioridades estarem todas trocadas.
O texto é a mais pura das vinganças. O texto que diz, que engancha o laço, o texto de último estertor dissimulado tem o primeiro alvo a fazer fundo, a dar assento. A vingança de um bom livro é a de haver-se esquecido de quem primeiro procurou vingar-se. A grande mortalidade do texto é a grande salvação do texto. Um texto é uma bala a riscar o céu numa tentação de lágrimas. E no lugar dos olhos lacrimosos, guelras nascidas, vida teimosamente a todo o cumprimento.
E na guerra não há listas de espera. Só um ajuste de contas com o tempo que se achou perdido e que volta como um familiar de quem não conhecemos senão partidas sem raiva, sem razão.
9.
Chegámos ao limite da ternura. Reconheço as ruas pelas esquinas e o lixo a atabalhoar os passos. Queremo-nos tanto pelo neo-realismo, os filmes da nossa infância desviada e o cheiro a lavanda, a mãe reencontrada nas cautelas a que ainda acedemos. Vais-te lembrando da morte próxima pelas carícias só admitidas quando durmo, pelo sobrolho demasiado relaxado se falamos. O coração e o medo enchem-te as veias e a melhor forma que arranjaste de contornar conselhos foi seres só pescoço e mãos e, bem, algumas varizes que te lembrem que há um lado ainda mais escuro que este quarto. Ele pergunta-te, felino (já só falas com o tecto, o chão caiu muito baixo. Brincas a isso de o céu ora ser desculpa ignominiosa ora tentação ingénua), o quarto pergunta: que seria das flores se não sacrificássemos, volta e meia, o mais inocente? Como seria o vagar se não começasse justamente no voltar atrás no dito e não-dito?
Amamos, assim, uma hipótese. Não hipoteticamente. Amamos, de facto, um tempo que nos merecesse, um dia que nos levasse e, oh, que bonito seria, as palavras todas seriam todas sem culpa, e nós a matéria concentrada num par de objectos. Seríamos um país contornável em 5 minutos como uma caricatura de rua. Seríamos familiares sem incorrer no crime da família.
Enquanto durmo, fazes-me carícias. No rosto, pelo pescoço que é um fundo-falso, um dentro viciado no próprio avesso. Na curva da cintura, na testa, no peito. Sabes que podem ser as últimas, mas nem por isso te apressas. A vantagem se é sobre o tempo dá pena, faz-te triste. Como não? Enquanto durmo, tenho-te tanto quanto tanto é a medida do tempo que não temos alguém: que é para sempre. Somos o que seríamos: a conta final que ainda podemos mandar para trás, – Devem ter-se enganado, com certeza! –, um despacho numa esquina, sob pena da nossa vida findar a troco de tudo o que poderia ter sido e não foi. Por isso, tudo o que amamos é já amar a sua morte. E nós com ela deitados. Sem riso, sorriso. Juntos, tranquilos, justos inundados num manto de prendas, os amigos que não vimos regressar a regressarem, as bocas abertas de gozo, os joelhos raspados de fé, recreio de areia, a escola e os colegas em desalinho descansando os dentes de leite. E depois a primeira sedução. E logo a seguir o último enterro antes do nosso. O humor negro, como convém à modéstia ornada dos enlutados que têm sempre muita razão, têm mesmo e sobretudo a grande razão de ser.