Há perguntas que não se fazem para serem respondidas – pelo menos de forma imediata ou superficial. Fazem-se para abrir fendas, convocar silêncios, escutar o que ainda não foi dito. São gestos que criam espaço para o diálogo e para a partilha. É desse impulso, interrogativo e radical, que regressamos à questão lançada por Maria Gabriela Llansol: “Como continuar o humano?”. A pergunta atravessa-nos como um sopro. Reverbera num tempo de exaustão e mudança – não para se encontrar uma solução definitiva, mas para servir de mote a um pensamento que não se fixa e que, pelo contrário, se move, inquieta e transforma.
Foi com essa interrogação, e com o fulgor que dela irrompe, que se construiu a Bienal de Arte Contemporânea da Maia 2025 (BACM 2025). Num circuito tantas vezes dominado por discursos curatoriais formatados e propostas expositivas arcaicas, a bienal destacou-se desde logo pela coragem de partir de uma pergunta tão radical, quanto filosófica. Regressou, em boa hora, à premissa que acompanhou a escrita de Llansol, na sua “luta quotidiana pelo fulgor”. O fulgor não como evanescência, nem como produto de um qualquer acaso errático, mas como forma de combate. Voltando à leitura astuta de Tolentino Mendonça, trata-se de “um esforço de todos os dias esta procura de luz, de intensidade, este desejo de uma cintilação na paisagem baça e opaca que, tantas vezes, parece ser a única que nos resta”.
Seguindo esta premissa, a BACM 2025 ensaiou, como sintetizou o seu curador Manuel Santos Maia, um futuro liberto do medo que permeia determinados discursos e narrativas e, por isso mais plural, inclusivo, desafiante e, simultaneamente, inventivo. O fulgor atravessou toda a programação, impulsionando outras formas de habitar o presente e de imaginar o porvir. Inscreveu-se nas entrelinhas das obras reunidas, onde esse fulgor se tornou memória, projeção e resistência. Expandiu-se, de igual modo, através das demais sugestões programáticas que, ao longo de meses, ajudaram a consolidar um acontecimento cultural descentralizado, capaz de se ligar à comunidade local, mas também capaz de trazer até si outras formas de estar e de saber. Assim se fez sentir uma escuta mais atenta das narrativas plurais que definem o nosso agora.
Neste percurso, quem viveu a bienal encontrou um lugar pulsante, onde um “corpo de afetos” se revelou através da criação. Na exposição central, cada obra contribuiu para essa escuta atenta do tempo. Entre gestos visuais, textuais e poéticos, mais de quarenta artistas deram corpo a uma realidade expandida que devolveu perguntas, inquietações e novas possibilidades de pensamento. Importa, por isso, sublinhar o trabalho de Manuel Santos Maia, que soube, no seio desta necessária polifonia, reunir artistas consagrados e emergentes num lugar de encontro onde se cruzaram geografias, memórias e imaginários.
Ao longo do percurso expositivo, o visitante foi convidado a dialogar com obras que questionam: da pintura à instalação, do objeto ao vídeo, cada peça abriu uma janela a outras formas de futuro. Merece destaque a presença de um conjunto expressivo de obras de Eduardo Batarda, um dos nomes maiores da arte portuguesa contemporânea, mas também o diálogo inusitado entre Ana Manso e André Romão ou a presença da poesia de Andreia C. Faria, Maria Brás Ferreira ou Nuno Félix da Costa.
Fundamental foi ainda a inclusão de obras de artistas moçambicanos, que sublinharam não só a urgência de continuarmos a refletir sobre o nosso passado colonial, mas também como evidência do quanto ainda ignoramos acerca da pujança criativa daquele país, volvidas cinco décadas após a sua independência. A partir destas linhas, teceu-se uma constelação de perguntas sobre pertença, herança, deslocamento e identidade, onde tal como defendeu Édouard Glissant, se entrelaçaram raízes de uma relação que é, afinal de contas, constante.
A BACM 2025 reforçou igualmente o seu papel como plataforma de visibilidade para artistas em início de percurso – uma abertura a linguagens emergentes e práticas menos reconhecidas pelos circuitos institucionais cristalizados. Esta aposta tem sido, desde sempre, uma marca distintiva da bienal, reafirmando-se agora como sinal claro de compromisso cultural e responsabilidade coletiva. É no encontro entre diferentes gerações, origens e formas de expressão que se renova o sentido de uma bienal que recusa fórmulas gastas e se posiciona à margem de modelos fechados e canónicos, mantendo-se aberta à pluralidade, à crítica e às propostas inusitadas que cada um dos seus participantes aporta.
Neste gesto de abertura, a relevância das coleções — institucionais e privadas — convocadas para esta edição, não pode ser igualmente dissociada de uma ambição maior. A BACM 2025 resgatou o potencial transformador dos acervos como um corpo vivo: não como arquivo imóvel, mas como ferramenta crítica, matéria de futuro. Cada obra recuperada de depósitos ou fundos menos visíveis foi reativada num presente que a desafia a dizer-se de novo, revelando-se como fragmento de um património em mutação. Assim se resgatou o sentido de uma prática curatorial atenta, que não receia trazer da penumbra muitas obras que, por vezes ao longo de anos, perdem o seu elo fruitivo essencial.
Mantendo um cruzamento pleno entre passado e presente, memória e reinvenção, a BACM 2025 afirmou-se como espaço de permanência e, ao mesmo tempo, de movimento – um lugar onde a arte não se encerra, mas se expande, acolhendo a comunidade. É nesse lastro que agora avançamos, carregando connosco o convite para continuar a interrogação de Llansol, reunir vozes, partilhar silêncios e manter sempre aceso ao fulgor. Essa força comum será sempre o gesto maior a recordar – espelho de um percurso feito de exploração e pensamento, que nos permite reviver momentos de crescimento partilhado e, seguindo a linha deste catálogo, regressar, uma e outra vez, a essa experiência viva.